É necessário e convencional que busquemos informações na literatura para basearmos nossos estudos científicos. A ciência é uma construção humana coletiva, realizada por diversos atores, com diferentes especialidades, às vezes separados por milhares de quilômetros, porém utilizando-se de preceitos metodológicos semelhantes. O início do método dá-se geralmente pela elaboração de uma pergunta, amparada na observação de um determinado padrão e suportada pelo conhecimento da literatura específica. Logo, na maioria dos casos, a ciência se comporta como a construção de um muro, onde cada artigo sobre determinado tema representa um novo tijolo de um paradigma ou uma teoria em construção. Segundo o filósofo Thomas Kuhn, anomalias ao paradigma vigente se acumulam ao longo do tempo, o enfraquecendo lentamente, e levando, em última instância a sua ruptura e substituição por um novo paradigma (Kuhn 1962).
Em 1983, Azam e colaboradores estabeleceram um novo paradigma científico, baseados em seus achados e de outros autores anteriores a eles. Eles propuseram que microrganismos que vivem na coluna d’água constituíram um importante elo entre a matéria orgânica dissolvida na água e níveis tróficos aquáticos superiores (e.g. zooplâncton e peixes), e batizaram este elo como alça microbiana (Azam et al. 1983, Figura 1). Assim, os microrganismos, antes tidos unicamente como decompositores da matéria orgânica, passaram a possuir uma importante função da transferência de energia e matéria nos ecossistemas aquáticos. E as bactérias planctônicas (ou bacterioplâncton), ao incorporar esta matéria orgânica dissolvida na sua biomassa, eram as peças fundamentais nesta nova rota de energia nas teias tróficas aquáticas.
Nesse novo contexto algumas importantes questões foram formuladas, como: 1) qual rota de transferência de energia é mais importante nos ecossistemas aquáticos: a alça microbiana ou a teia trófica tradicional, centralizada na produção primária pelo fitoplâncton? 2) qual a principal função do bacterioplâncton: a transferência de energia nas teias tróficas aquáticas (alça microbiana) ou a decomposição da matéria orgânica (função tradicionalmente estabelecida)? E, nos últimos 30 anos, com o objetivo de responder algumas destas questões, vários trabalhos foram realizados, como indica a Figura 2 abaixo.
A Figura 2 foi obtida do Programa Web os ScienceTM. Este programa é um buscador de artigos científicos em jornais especializados, localizando-os através de palavras-chave (e.g. tema do trabalho, autor, ano de publicação, jornal) fornecidas no momento da busca. No caso abaixo, procurei todos os trabalhos que utilizaram o trabalho seminal de Azam e colaboradores (1983) nas suas listas de referências utilizadas (Figura 2, eixo x – ano da publicação; eixo y – número de citações). Obtive, em 12 de agosto de 2013, 2450 artigos publicados que citaram Azam e colaboradores com uma média de 82 citações por ano! Porém, observando atentamente as citações encontradas, poucas (< 10%) de fato testaram a alça microbiana como via alternativa de energia e matéria em ecossistemas aquáticos (1ª questão formulada acima) e a grande maioria das citações apenas utilizaram a alça microbiana como um paradigma já estabelecido. Os trabalhos que, de fato, testaram a alça microbiana são, no geral, inconclusivos sobre sua importância relativa à teia alimentar tradicional.
A segunda pergunta formada acima se refere a principal função do bacterioplâncton nos ecossistemas aquáticos, como fonte de energia para níveis tróficos superiores, ou como decompositores da matéria orgânica dissolvida. Para responder esta pergunta, vários autores utilizam uma relação matemática chamada Eficiência do Crescimento Bacteriano (sigla ECB), que avalia quanto da matéria orgânica dissolvida foi incorporada à biomassa bacteriana em relação à matéria orgânica dissolvida decomposta pelas bactérias. Logo, a ECB avalia, na prática, a importância relativa das bactérias planctônicas para a transferência de energia entre níveis tróficos (alça microbiana) ou para a decomposição. Muitos estudos foram realizados sobre a ECB e indicaram que esta varia entre 20 e 35% na maioria dos ecossistemas (i.e. 20 a 35% da matéria orgânica captura pelo bacterioplâncton é incorporada à biomassa bacteriana, enquanto que o restante é decomposto).
Assim, temos um quadro parcial que indica que poucos estudos de fato avaliaram a importância da alça microbiana em ecossistemas aquáticos e que o bacterioplâncton (base da alça microbiana) incorpora de 20 a 35% do carbono adquirido em sua biomassa e o respira e/ou excreta o restante. Observando a literatura, também facilmente conclui-se que grande parte destes resultados foi obtida em ecossistemas aquáticos temperados e que estudos sobre este tema em ecossistemas aquáticos tropicais foram, historicamente, negligenciados. Será então que analisando melhor os ecossistemas aquáticos tropicais, um novo quadro surgirá? Ou os padrões observados anteriormente se manterão independente de qualquer regionalidade?
Em 2009 publicamos um artigo apontando novas direções nos estudos de ecossistemas aquáticos tropicais ricos em matéria orgânica dissolvida (Farjalla et al. 2009). Estes ecossistemas seriam, por definição, “a casa da alça microbiana”, pois são ricos em matéria orgânica para o consumo das bactérias e o fitoplâncton é muito limitado pela falta de luz (o excesso de matéria orgânica limita muito a penetração da luz na água). Porém nossos resultados não mostraram isto. Observamos uma ECB muito baixa nestas lagoas e altas taxas de respiração bacteriana, indicando que grande parte do carbono incorporado pelas bactérias é decomposto e pouco é assimilado à sua biomassa. Também observamos que o zooplâncton se alimenta preferencialmente de algas e que pouca energia chega a estes organismos através da alça microbiana. Logo, se a alça microbiana foi “pouco importante” nestas lagoas, onde ela será importante?
Neste ano, novos resultados foram publicados focando principalmente na ECB (Amado et al. 2013). Baseados em vários estudos realizados recentemente em ecossistemas tropicais brasileiros, observamos que a ECB é mais baixa na região tropical que em regiões temperadas, principalmente porque as taxas de respiração bacteriana são mais altas nos sistemas tropicais (Figura 3). Estes resultados indicam que as bactérias nos trópicos convertem mais carbono em CO2 e menos em biomassa bacteriana que em regiões temperadas.
Assim, baseados nestes dois trabalhos, perguntamos: precisamos de um novo paradigma para o fluxo de energia nas teias alimentares aquáticas tropicais? Será que a pouco estudada alça microbiana é menos importante nos trópicos? Se a alça microbiana não é importante, há outra importante via de energia nas teias alimentares tropicais? O consumo direto de matéria orgânica particulada pelo zooplâncton é um caminho promissor, bem como a produção primária realizada por algas que possuem o tamanho de bactérias (picoplâncton). É hora de acumularmos evidências e, quem sabe, revolucionarmos a ciência (segundo Thomas Khun).
Referências Citadas
Amado AM, Meirelles-Pereira F, Vidal LO, Sarmento H, Suhett AL, Farjalla VF, Cotner JB, Roland F (2013) Tropical freshwater ecosystems have lower bacterial growth efficiency than temperate ones. Frontiers in Microbiology. doi:10.3389/fmicb.2013.00167 Azam F, Fenchel T, Field JG, Gray JS, Meyer-Reil LA, Thingstad F (1983) The ecological role of water-column microbes in the sea. Marine Ecology Progress Series 10:257–263. Farjalla VF, Amado AM, Suhett AL, Meirelles-Pereira F (2009) DOC removal paradigms in highly humic aquatic ecosystems. Environmental Science and Pollution Research. doi: 10.1007/s11356-009-0165-x Farjalla VF, Amado AM, Esteves FA (2011) Bacterioplâncton. Em: Fundamento de Limnologia, 3ª Edição, Interciência. Kuhn TS (1962) The Structure of Scientific Revolutions. University of Chicago Press, Chicago.
Vinícius, vou fazer uma pergunta boba, me perdoe se for boba demais. Quando mostramos que a produção bacteriana nos trópicos e nas região temperada são iguais não estamos mostrando então que a alça microbiana teria importância similar nos dois sistemas? Independente do fato da eficiência ser menor nos trópicos (maior temperatura? mais respiração?) a produção de biomassa é a mesma e fica disponível pra quem está em cima. Logo só por estes gráficos não podemos ainda falar onde a alça é mais importante. Mas se quisermos dar um chute o chute vai ser que é igual. certo? ou não….?