A tarefa de escrever este post me foi dada de forma discreta, insidiosa, inteligente. Não foi cobrança, menos obrigação, foi provocante. – “Escreve o que quiser, é disso que precisamos! O que você achar importante!” Fisgou-me. Isto foi em dezembro, vieram festas, férias, e não consegui esquecer que devia escrever algo, mais que isto, que eu podia escrever algo. O anzol não se soltava. Angustiei-me (não se assustem, me angustio com frequência, quem me conhece sabe disso), mas não sofri. Curti (no literal) a inteligente provocação do “escreve qualquer coisa” revisitando o nosso blog neste ano. Está muito bom! Variado, adensado, bonito, rico em estilos, provocante, espirituoso, mostrando a nossa cara, de como somos neste laboratório. E aí a angústia aumentou. Com tanta coisa boa, o que posso dizer eu agora? Não conseguia desligar. Sentia que o tempo passava. Queria acabar logo com aquilo. E foi como o sambista já cantou, que comecei a sair do poço. “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”. Foi abrindo o jornal, enquanto via meu ócio lutar com a provocação do blog, que li a chamada: “Brasil contribuirá para um novo modelo global”, afirmava o sociólogo Domenico de Masi.
Se pararmos para pensar, concluiremos que esta é das coisas que mais queremos, não? Um novo modelo. Olhando ao lado, folheando o mesmo jornal, são tantos os problemas que vemos, todos os dias, em todo lugar, nas mais variadas situações. Pensamos mais e concluímos, invariavelmente, que trata-se de um problema de modelo. O nosso, capitalista e selvagem, não dá mais. Não divagando muito (o que faço com excessiva frequência) e restringindo me à área ambiental, é esta a conclusão também. O modelo é predador voraz. Avançamos sobre o ambiente dominando-o, e assim o retalhamos, ou entupimos.
É aquela velha história do esgoto, por exemplo. Coletamos 50% e tratamos talvez 25%. E não estamos melhorando, pois esta é a situação há 20 anos. Passamos pela linha vermelha e vemos a ETE da Alegria praticamente vazia, mas a baía entupida de esgoto. Muitos de vocês não eram nem nascidos, na década de 90, e já havia uma montanha de dinheiro japonês para o Plano de Despoluição da Baía da Guanabara (que nos tempos de Lévi-Strauss NÃO parecia uma boca banguela, mas que agora parece sim, com dentes podres e cáries infindas, temos que admitir). E por aí vai: o desmatamento da Amazônia que mais parece um iô-iô, aterros de áreas úmidas, superportos colados em áreas de proteção e que rasgam as restingas, esgarçamento de nossas leis ambientais para aumentar nossa produção agrícola e enriquecer poucos exportando soja(e água) para alimentar porcos distantes, mudanças climáticas se asseveram e vamos mais longe, mais fundo no mar buscar petróleo, muito petróleo. Será que ao menos temos um bom plano de contingência para proteger nosso mar de acidentes? Nos EUA as empresas têm que ter seguros ambientais e o próprio país tem um superfundo para estas situações. E nós temos o que? Muitas intenções, quase nada na prática, pois no final das contas, o que conta é o custo e o poder(da grana), pois é este o modelo.
Mas De Masi (e tantos outros) crê numa necessária mudança de modelo e nós podemos “dar contibuições insubstituíveis à formação do novo modelo global”. E isto tem a ver com nosso patrimônio histórico e cultural. História e cultura (e a nossa ciência, manifestação da mesma cultura) que temos e produzimos a cada dia, também em nosso fazer universitário. E Masi ressalta algo que já conhecemos de pele. O mundo se amestiça com as migrações, pela mídia, pela internet. Nós já nascemos mestiços. E um modelo novo para ser melhor há que ser mestiço, como mestiça deveria ser a ciência parida em nossos laboratórios. Masi ressalta nosso sincretismo, nossa cordialidade, nossa sensualidade sem senso de culpa, a receptividade, a amizade. Já pensaram que somos mesmo assim? Na segunda temos tanto prá contar pro colega que a pipeta tem que esperar um pouco. Não importa, pois pipetamos com mais leveza depois. Quantas paradinhas pro café, falar do futebol, do corpo escultural estendido na areia, sofrer com a doença do conhecido do amigo do cunhado do outro. Para Masi somos culturalmente antropofágicos, e somos mesmo: e somos mesmo! Oswald de Andrade começou isto lá atrás com seu Manifesto Antropofágico.
E é assim que devemos fazer a nossa ciência. E erramos se assim não a fazemos. Não podemos viver SÓ a copiar modismos ianques, nos matarmos por um maior fator de impacto. Eles não pagam as nossas contas, só querem o nosso carbono, e nos mandam o que não lhes interessa mais. O norte é diferente, e somos do sul. Devorando e assimilando de forma crítica o fazer ciência do norte, será nossa forma de contribuir para gestar o novo modelo. E ainda temos mais, como uma atitude positiva frente à vida, uma aversão à guerra, uma baixa propensão ao racismo, coisas tão fortes e presentes no norte, que às vezes igualamos por aqui como preguiça (lembram do Macunaíma? Desta vez o Mário de Andrade). É melhor assim. Que nas nossas bancadas sejam fluidos os limites entre o profano e o sagrado, entre o formal e o informal, entre o público e o privado, entre a emoção e a regra, como continuou a afirmar De Masi.
Eu de minha parte só vejo nisto fermento para a criatividade, para a inventividade, para a inovação, pela empolgação que temos em pegar uma garrafa pet, dois elásticos, um arame e afundá-los na lagoa para testar a pergunta que nos atormenta; em espalhar caixas d’água ou cabaninhas plásticas pela restinga. Isto não quer dizer que será fácil e que já temos a saída, pois as transformações quase nunca são tranquilas, o que não significa que deva ser violenta. Temos mais que o embrião da mudança em nós, mas é preciso não cochilar e suar muito, com sacrifícios cotidianos, trabalhando pela aproximação dos nossos desafios, pela busca de uma mirada comum, principalmente na rotina da bancada, pois acreditamos muito no papel central da ciência. De uma ciência motivada pelo aumento da igualdade, da justiça, combatendo a violência, a corrupção, o analfabetismo, que como De Masi, acredito que é o que motiva este Brasil jovem que tem ido às ruas, que já está muito cansado daquela sua parcela que é mesquinha e usurpadora. E o que Frei Galvão tem a ver com isto tudo? É uma homenagem ao amigo Fabio Scarano, que há anos insiste na necessidade da construção desta ciência mestiça. Nos momentos de máxima empolgação ele justificava nossa posição colonizada, entre outras coisas, à tremenda injustiça histórica de o maior país católico do mundo não ter sequer um santo. Agora já temos, valha-nos Frei Galvão!