Já pensando sobre o desafio do seminário que apresentarei no laboratório, gostaria de colocar algumas questões sobre o tema… Fazer um aquecimento e já apresentar alguns pontos de partida centrados na questão sobre a reflexividade da pesquisa qualitativa… Claro que aqui neste texto, considero um público mais amplo (o de “internautas”) do que o costumeiro público presente nos almoços em dias de seminários internos. Considero um desafio, pois me proponho a refletir sobre a pesquisa qualitativa para um grupo que, em sua grande maioria, está interessado nas respostas estatísticas, numéricas, quantitativas. Um grupo que considera como inerentes do processo os afastamentos entre sujeito e objeto da pesquisa.
Um desafio também se faz presente nas minhas reflexões, desta vez não pensando no público, mas considerando a própria arena da pesquisa qualitativa e minha relação com ela… Sendo a esfera da pesquisa qualitativa tão heterogênea, não tenho grande experiência de trabalho com todas as suas propostas. Meu olhar para a pesquisa qualitativa está relacionado ao de quem trabalha com análise do discurso e análise do conteúdo temática. É isso o que tenho a oferecer. Esta será minha contribuição – uma visão dentre várias -, porém valiosa, para o desenvolvimento de pesquisas na área da educação ambiental. Deste modo, a presente abordagem terá alguns recortes. Espero que tais questões permitam o início de um frutífero debate, no qual o grupo sai mais maduro. Lembram dos ônus e bônus do trabalhar em grupo, do grupo diverso que formamos no laboratório (situo a questão na fala de encerramento do workshop de dezembro de 2013 do laboratório)? As relações entre diversidade e estabilidade não são positivas?
Para dar densidade aos argumentos, localizando autores experientes no campo, utilizarei alguns parágrafos da minha tese – fruto de revisão de literatura já consolidada- para a composição do texto que se segue. Assim, justifico o uso do itálico nos trechos a seguir.
A sociedade privilegia a geração do saber científico, e os processos decisórios nela são respaldados por uma justificativa técnico-científica. O mundo acadêmico quando olhado de fora, parece homogêneo quanto aos modos de fazer pesquisa. Contudo, o meio acadêmico não é uníssono. Nele há distintas abordagens e escolas, geradas por diferentes propósitos a partir da atividade de pesquisa. No campo da pesquisa acadêmica, os modos de fazer pesquisa nas ciências naturais e humanas/sociais são distintos. Em se tratando do campo da educação ambiental, encontramos pesquisas relacionadas ao modo de fazer pesquisa das ciências naturais, a partir da busca de um entendimento natural da realidade, e pesquisas provenientes de uma discussão social utilizando ferramentas das ciências sociais.
[…]
Alvez-Mazotti e Gewandsznajder (2004) discutem ainda diferentes abordagens dentro da pesquisa qualitativa, que diferem pela posição frente à natureza do real; quanto ao campo de objetos julgados apropriados ao tipo de pesquisa; quanto às crenças sobre méritos de diferentes métodos e técnicas etc.
Patton, (1986, p.22 apud ALVEZ-MAZOTTI e GEWANDSZNAJDER, 2004) descreve que a natureza dos dados qualitativos é predominantemente feita a partir de:
“descrições detalhadas de situações eventos, pessoas, interações e comportamentos observados, citações literais do que as pessoas falam sobre suas experiências, atitudes, crenças e pensamentos, trechos ou íntegras de documentos, correspondências, atas ou relatórios de casos.”
Sobre as investigações qualitativas sob uma perspectiva sócio-histórica Freitas (2002) acrescenta:
“Apoiando-me em Bogdan e Biklen (1994) compreendo que também na investigação qualitativa de cunho sócio-histórico vai-se a campo com uma preocupação inicial, um objetivo central, uma questão orientadora. Para buscar compreender a questão formulada é necessário inicialmente uma aproximação, ou melhor, uma imersão no campo para familiarizar-se com a situação ou com os sujeitos a serem pesquisados. Para tal o pesquisador freqüenta os locais em que acontecem os fatos nos quais está interessado, preocupando-se em observá-los, entrar em contato com pessoas, conversando e recolhendo material produzido por elas ou a ela relacionado. Procura, dessa maneira, trabalhar com dados qualitativos que envolvem a descrição pormenorizada das pessoas, locais e fatos envolvidos. A partir daí, ligadas à questão orientadora, vão surgindo outras questões que levarão a uma compreensão da questão estudada. Trabalhar com pesquisa qualitativa numa abordagem sócio-histórica consiste, pois, numa preocupação de compreender os eventos investigados, descrevendo-os e procurando as suas possíveis relações, integrando o individual com o social.”
A pesquisa qualitativa considera o pesquisador como um dos principais instrumentos da pesquisa, porque se insere nela e a análise que faz depende de sua situação pessoal-social (FREITAS, 2002). E deste modo não nega aspectos da reflexividade da pesquisa. Busquei em Usher (1996) questões sobre elementos de reflexividade. De acordo com o autor, são tipos de reflexividade: pessoal, social e epistêmica ou disciplinar.
A reflexividade pessoal pode ser entendida como uma “projeção” do pesquisador em sua pesquisa, rompendo com a pretensão de neutralidade da ciência. A pesquisa assim realizada, bem como os caminhos percorridos pelo pesquisador, revela muito da identidade do pesquisador, dos anseios e indagações próprias, da influência dos valores e pontos de partida do pesquisador, não apenas na escolha do objeto ou do tópico pesquisado, mas também no como a pesquisa é desenvolvida, como os dados são gerados, e como sua significância é avaliada. Adensando a discussão, o autor acrescenta que, considerando o aspecto reflexivo da pesquisa, a relação sujeito-objeto é caracterizada por aproximações e não por afastamentos como tradicionalmente observado na pesquisa no campo das ciências naturais. Desta forma, o fato da pesquisa estar impregnada das opções do pesquisador e de suas indagações não, é sob, tal ponto de vista, algo permissivo à pesquisa, mas sim intrínseco a ela. Gee (1999) apresenta a noção de reciprocidade como uma propriedade da linguagem e discute a reflexividade da pesquisa explicando-a como uma relação entre linguagem e realidade no sentido de que a linguagem tanto reflete como constrói a realidade.
Além dos aspectos pessoais que influenciam a pesquisa, o autor relata que as implicações também são no campo social, refletindo sobre onde se vai com a pesquisa; que tipo de mundo ou realidade e que tipo de conhecimento está sendo construído pelas questões e pelos métodos utilizados. Sendo assim, parto da premissa de que a pesquisa é uma interação discursiva, como em Martins (2006), porque entendo que a agência do pesquisador direciona as escolhas realizadas na pesquisa e é também responsável pelo seu desenvolvimento e utilização dos métodos. Por tanto, a natureza dos dados é fruto de uma construção pelo pesquisador a partir de registros.
Martin Rojo (2006) entende que o fato dos analistas do discurso serem conscientes e considerarem presentes os aspectos da reflexividade social aumenta o seu interesse pelos efeitos da sua investigação e abre possibilidades de intervir e modificar práticas discursivas em decorrência de tais investigações. A interpretação sobre a natureza do mundo social pode ser gerada pela reflexividade social, na qual uma pesquisa científica é imersa em determinado contexto social e tem determinados interesses e traduz determinada visão de mundo. Neste caso, entendo que somos constituídos pelo mundo social e agimos sobre ele, não apenas para reproduzir o mundo social, mas para modificá-lo. Esta mudança faz-se a partir de uma visão epistemológica relacionada ao campo científico que ao fazer uma pesquisa se tem a possibilidade de romper com a própria lógica da pesquisa.
Kuhn (2005) e Lakatos (1970 apud CHALMERS, 1999) compreendem a ciência como um fenômeno social, sendo gerada por um grupo de seres humanos com seus interesses e oportunidades. A reflexividade epistêmica ou disciplinar reconhece que pesquisa sempre carrega uma epistemologia, e sua relação com o mundo ou realidade e, portanto, refere-se a entender a pesquisa em seu contexto de realização e a partir da geração de uma comunidade científica. Estas questões que acabam por romper com a neutralidade da ciência são defendidas por muitos pesquisadores. Izquierdo et al. (2004) entendem que os valores que guiam a atividade científica estão nos âmbitos ético, sociopolítico e epistemológico. Para eles a dimensão ética envolve a responsabilidade e as tensões entre os interesses individuais e coletivos. A dimensão sociopolítica considera que a ciência também está submetida a uma tensão entre o papel e o status dos cientistas e dos cidadãos e neste âmbito a equidade é um valor central. Por fim, a dimensão epistemológica entende que a atividade científica constrói um conhecimento que em si mesmo tem valor, que as realizações científicas estão elas mesmas carregadas de valores.
Podemos também discutir a reflexividade disciplinar no campo da EA, entendido aqui como um campo de pesquisa e de prática, sendo a investigação sendo gerada por demandas sociais e retroalimentando-a. Sauvé (2008) entende a investigação em EA como um campo de ação social uma vez se constrói em um espaço de dinâmica social e se situa em contextos e culturas particulares.
Sendo assim, aderi a determinado campo disciplinar dentro da EA, dentro da investigação científica e o estou apresentando de modo a criar elementos para um debate (não só no seminário por pela rede).
É na perspectiva da reflexividade, que entendo a localização das pesquisas em EA: assinalada com marcas explícitas de sua imersão em um contexto sócio-histórico em que a pesquisa ocorre, além disso, imersa em uma realidade concernente a uma prática social do pesquisador e implicada com uma atuação política que extrapola o campo da investigação.
Com isso creio que teremos elementos para apresentação de tipos e exemplos de pesquisas qualitativas.
Referências bibliográficas:
ALVES-MAZOTTI, A.J.; GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: pioneira Tompson Learning. 2ª edição. 2004. 203p.
CHALMERS, A.F. ¿Qué es esa cosa llamada ciencia? Madrid:Ed. Siglo XXI 1976/1999.247p.
FREITAS, M.T.A. A abordagem sócio-histórica como orientadora da pesquisa qualitativa. Cadernos de Pesquisa. Fundação Carlos Chagas. São Paulo. n.116, p.21-39 jul. 2002.
IZQUIERDO et al. Ciencia escolar y complejidad. Investigación em la escuela.n.53, p.21-29, 2004.
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. 9 ed. São Paulo: perspectiva. 260p. 2005.
GEE, J.P. An Introduction to Discourse Analysis: theory and method. Routledge, London.1999. 176p.
MARTÍN ROJO, L.M. El análisis crítico del discurso. Fronteras y exclusión social en los discursos racistas. 161-195p. En: RUEDA, L.I. (org.). Análisis del discurso: Manual para las ciencias sociales. Editorial UOC. Barcelona. 2006. 255p
MARTINS, I. Dados como diálogo: construindo dados a partir de registros de observação em interações discursivas em salas de aula de ciências. In: SANTOS, F.M.T; GRECA I.M.(orgs.). A pesquisa em Ensino de Ciências no Brasil e suas Metodologias. Inijuí. 2006, p.297-321. (Coleção Educação em Ciências).
SAUVÉ, L. A investigación universitaria en educación ambiental: tendencias teóricas e metodolóxicas nas comunidades francófonas. En: MEIRA, P. y ANDRADE, M. (Coords.): Investigación e formación en Educación Ambiental. Novos escenarios e enfoques para un tempo de cambios. Galicia, CEIDA, p.19-42. 2008.
USHER, R. Textuality and reflexivity in educational research. In: SCOTT D. and USHER R. (Org) Understanding educational research. Ed. Routledge. 1996. p.33-51.
por: Laísa Maria Freire