Já falamos aqui no blog sobre os conflitos gerados pela escassez de água. Quando pensamos neste assunto, é fácil relacionar o tema aos países ou regiões áridas, onde há poucos rios e muitos são intermitentes. O problema é grande no Oriente Médio, por exemplo, onde Israel já depende em grande parte de rios localizados em áreas de conflito para seu abastecimento. Entre estas áreas estão as disputadas Colinas de Golan, onde se origina 15% da água doce utilizada por Israel, e que devem muito do seu valor geopolítico às nascentes de vários rios que ali existem.
Já na realidade brasileira, a falta de água está geralmente associada ao semi-árido nordestino, onde anos com secas especialmente fortes resultam em perdas de plantação e animais, agravando a situação econômica e social em locais que já possuem um histórico de problemas. Mesmo assim, essas localidades geralmente estão no interior dos estados, o que resulta em um distanciamento entre o problema ambiental e a população que mora nos grandes centros. A pergunta que fica é: e quem mora nas grandes cidades do país, vai viver tempo suficiente para presenciar disputas pela água?
A resposta é sim. Na verdade, nesse exato momento está sendo delineada uma disputa entre os estados de Rio e São Paulo em relação ao Rio Paraíba do Sul. O Paraíba do Sul nasce na Serra da Bocaina, em São Paulo, percorrendo um percurso de cerca de 1200 km antes de chegar ao Oceano Atlântico, no município de São João da Barra (RJ). Ao longo de todo o seu percurso recebe afluentes importantes, em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. É um rio bastante utilizado, abastecendo indústrias, agricultura e consumo doméstico. Só neste último caso, abastece 15 milhões de pessoas, 10 milhões apenas na região metropolitana do Rio de Janeiro.
Recentemente foi divulgado um plano do governo do estado de São Paulo de desviar parte da vazão do Paraíba para o sistema Cantareira, a principal fonte de abastecimento para a região metropolitana da capital paulista. Na verdade o desvio não seria no Paraíba do Sul em si, mas no Rio Jaguari, que hoje é um dos principais tributários do Paraíba e após o desvio parte de sua água iria abastecer a Represa de Atibainha, parte do sistema Cantareira. Isso seria uma consequência da forte estiagem que ocorreu este ano, que, associada a um consumo cada vez mais alto, resultou em reservatórios com níveis criticamente baixos de água. No caso do sistema Cantareira, foram realizadas obras emergenciais para que as bombas conseguissem acessar a água em pontos do reservatório onde nunca houve captação até então.
Esse tipo de desvio de água de um rio para outro não é novidade e é utilizado em outras cidades. Grande parte da água do Paraíba do Sul que abastece o Rio, por exemplo, é desviada para o Rio Guandu, para só então ser captada pelas empresas de abastecimento. O problema é que, sempre que muita água é retirada de um rio, ele passa a ter uma vazão menor à sua jusante (ou seja, no ponto “depois” da captação). E se lá embaixo tem gente dependendo dessa água para beber ou irrigar terras, eles não vão gostar nada disso.
Foi o que aconteceu, com o governo do estado do Rio se posicionando de maneira firme, informando que a retirada dessa quantidade de água é inviável e que prejudicaria gravemente o abastecimento do estado, cujo único grande rio é justamente o Paraíba do Sul. Além de gerar um prejuízo ao uso doméstico, também afetaria negativamente a economia no interior do estado, que é bastante dependente de agricultura irrigada. O governo paulista, por sua vez, afirma que o Rio Jaguari faz parte apenas do estado de São Paulo e que esta deve ser uma decisão interna.
O que vai ser decidido são cenas dos próximos capítulos. Por se tratar de uma bacia interestadual, decisões como essa devem passar pelo governo federal, em orgãos como a Agência Nacional de Águas. Há diversos mecanismos em uso hoje que buscam resolver conflitos como esse e ordenar os recursos hídricos de forma a suprir as necessidades humanas sem prejudicar a qualidade da água e dos ecossistemas aquáticos. Embora muitas vezes decisões importantes como essa sofram grandes pressões políticas, é fundamental que seja ouvido o corpo técnico e comunidade científica, para avaliar que tipo de impacto surgiria com cada alternativa sugerida.
Sobre a proposta do desvio do Paraíba, alguns técnicos afirmam que isso não resolveria o problema, já que as obras necessárias levariam até 18 meses e a necessidade de água existe agora. Por outro lado, há uma série de problemas que atingem os ambientes aquáticos em ambos os estados e que devem ser resolvidos. Assoreamento nos rios, desmatamento da vegetação ciliar, despejo de esgoto não tratado, presença de agrotóxicos, entre outros, afetam não só os organismos que vivem lá mas também prejudicam e aumentam muito o custo do tratamento de água para consumo humano.
Além disso, o desperdício ao longo do sistema de abastecimento ainda é enorme. Desde manilhas com vazamento, tubulações quebradas por dias, retirada irregular de água (os “gatos”), tudo isso faz com que mais de 30% da água tratada distribuída pela CEDAE e pela Sabesp seja desperdiçado. Um aumento na eficiência – com redução no desperdícios – seria suficiente para abastecer centenas de milhares de pessoas sem retirar nem 1 litro a mais dos rios. Uma grande obra como essa transposição poderia até resolver um problema emergencial, mas para chegar a uma solução sustentável a longo prazo é necessário melhorar muito a gestão das águas e dos ambientes aquáticos.
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