O Porto de Manaus fervilha de atividade: são barcos de pesca de todos os tamanhos, grandes navios industriais, balsas levando alimentos e máquinas para as cidades do interior, canoas vindas de igarapés distantes, botos-rosa e tucuxis nadando em meio ao movimento. E há um grupo especial de barcos, que saem todos os dias do porto carregados de turistas. Após cerca de uma hora navegando no Rio Negro, chegam a um dos mais famosos pontos turísticos da metrópole amazônica: o Encontro das Águas.
Neste local o Rio Negro deságua no Solimões, formando o Rio Amazonas, o maior do mundo em vazão. A diferença entre os dois rios é marcante: de um lado, as águas transparentes e escuras do Negro, com sua cor de chá-mate; do outro, o Solimões com suas águas turvas, amarronzadas, com muito material em suspensão. Eles seguem assim, lado a lado, sem se misturar totalmente, por dezenas de quilômetros rio abaixo. Um dos pontos altos do passeio é mergulhar bem onde os rios se encontram e sentir a diferença de temperatura entre eles.
Mas as diferenças entre os dois rios não se restringem à temperatura. Na classificação dos rios da Bacia Amazônica, o Rio Negro é considerado um rio de águas pretas, enquanto o Solimões é um rio de águas brancas. Rios de águas pretas tem poucos nutrientes, menos íons dissolvidos na água (condutividade) e baixa produção primária por algas, mas apresentam altas concentrações de carbono orgânico dissolvido na água, o que dá sua coloração característica.
Já os rios de águas brancas são originados em áreas de solos mais ricos, como os Andes, e transportam bastante material em suspensão erodido destas regiões. Isso resulta em águas com mais nutrientes, o que possibilita maior produção do fitoplâncton, além de suportar maiores estoques pesqueiros. Há ainda um terceiro tipo, os rios de águas claras (como o Rio Trombetas), que também são pobres em nutrientes como os rios de água preta, mas possuem menos carbono orgânico dissolvido, apresentando águas cristalinas.
Além dos peixes e das algas, as bactérias que vivem na água – e são parte fundamental da teia trófica aquática – também dependem da quantidade de nutrientes e matéria orgânica disponível na água. As bactérias heterotróficas utilizam estas moléculas no seu metabolismo, seja para produzir biomassa ou simplesmente para gerar energia. Cada rio tem uma comunidade específica de bactérias, com metabolismo adaptado às condições existentes no meio. Mas o que acontece quando rios se encontram, e tanto a água quanto as comunidades bacterianas se misturam?
Essa pergunta é respondida pelo artigo “Are mixing zones between aquatic ecosystems hot spots of bacterial production in the Amazon River system?”, de autoria do prof. Vinicius Farjalla, do Laboratório de Limnologia, publicado em fevereiro de 2014. O artigo avalia o que acontece com a produção de biomassa bacteriana – também chamada de “produção secundária” – no encontro das águas entre diferentes rios amazônicos.
Áreas de alta heterogeneidade ambiental, como essas zonas de confluência, são conhecidas por apresentar elevada biodiversidade. A idéia é que, onde 2 tipos diferentes de ecossistemas se encontram, tanto espécies que vivem em um quanto em outro conseguem coexistir, por utilizarem recursos distintos. E se isso funciona para aumentar a diversidade, é possível que também resulte no aumento de alguns processos ecossistêmicos. E pelo mesmo princípio, quanto mais diferentes os ecossistemas presentes na zona de mistura, mais significativo é este aumento.
No artigo, por exemplo, foram estudadas zonas de mistura de diferentes rios, nas bacias do Rio Madeira (de águas brancas), Rio Negro (águas pretas) e Rio Trombetas (águas claras). O encontro das águas às vezes ocorria entre rios semelhantes – os dois de águas claras, por exemplo – e às vezes entre rios bem diferentes – como o Negro e o Solimões. E em cada encontro há sempre um rio menor, chamado de tributário, e o rio maior, chamado de rio principal. Para avaliar o efeito da mistura sobre a produção bacteriana, foram preparadas 3 amostras em cada local: uma somente com a água do tributário, outra somente com a água do rio principal e a terceira misturando a água dos dois, em uma razão de 1:1, para simular a zona de mistura.
Em 75% dos casos, a produção bacteriana foi maior nas zonas de mistura simuladas. E esse aumento também variou bastante, indo de 30% a 1000% de incremento! Mas esse efeito só acontece de forma pronunciada nos locais de confluência entre rios com águas diferentes, enquanto nas zonas de mistura entre rios similares não há um grande aumento no metabolismo.
As zonas de convergência parecem mesmo ser hotspots de processos bacterianos, pelo menos na Bacia Amazônica. Há duas hipóteses principais para explicar isso. Primeiro, sabe-se que o crescimento bacteriano é limitado por nutrientes diferentes em cada tipo de rio. Em águas pretas e claras, o metabolismo é limitado por fósforo, enquanto em rios de água branca, o carbono orgânico dissolvido é o recurso limitante. Logo, quando um rio de água preta e um de água branca se misturam, passa a haver maiores concentrações tanto de fósforo quanto de carbono, possibilitando maiores taxas de produção de biomassa.
Além disso, o próprio carbono tem características diferentes em cada tipo de rio. Em lagos de água branca, por exemplo, a maior parte do carbono orgânico dissolvido na água é produzido pelas macrófitas, enquanto nos rios de água preta é a vegetação terrestre que mais contribui, já que a produção primária dentro da água é reduzida. Dependendo da sua origem, a matéria orgânica é utilizada pelas bactérias com maior ou menor eficiência. E nas zonas de mistura, com maior variedade de moléculas orgânicas, o metabolismo pode aumentar.
A segunda hipótese trata não da diversidade de recursos, mas da diversidade de bactérias. Outros artigos já mostraram que, geralmente, o aumento na diversidade bacteriana tende a aumentar a taxa de processos ecossistêmicos, como decomposição e produção de biomassa. Como cada rio tem uma comunidade bacteriana distinta, nos locais de confluência a comunidade resultante tenderá a ter mais espécies.
O metabolismo bacteriano geralmente é baixo em rios amazônicos, mas essas zonas de mistura podem representar hotspots, ou locais específicos onde os processos ecossistêmicos ocorrem em taxas especialmente elevadas. As bactérias possuem um papel fundamental no processamento de carbono nos ambientes aquáticos amazônicos, e alterações significativas no seu metabolismo podem ter implicações até mesmo no nível da biogeoquímica.
Então, da próxima vez que você visitar Manaus e for ao passeio do encontro das águas, aproveite o barco, tire foto dos botos, nade bastante, mas não se esqueça dos complexos fenômenos ecológicos que nascem quando dois rios se encontram.
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