Em meados de 2003, eu participava de meu primeiro congresso científico, ainda como aluno de graduação e estagiário do Laboratório de Limnologia/UFRJ. Era o IX Congresso Brasileiro de Limnologia, em Juiz de Fora (MG). Dentre as várias palestras ministradas, uma me chamou particularmente a atenção, pois tratava de um assunto totalmente desconhecido para mim: os estados estáveis alternativos em ecossistemas. A palestra foi proferida com maestria pelo Limnólogo holandês Marten Scheffer, um dos principais estudiosos do assunto.
No último mês, tive a oportunidade de abordar este tema numa aula para alunos do Bacharelado em Ecologia da UFRJ e ao constatar que, assim como eu na minha época de graduando, a maioria deles nunca tinham ouvido falar do assunto, surgiu a ideia de escrever um pouco sobre o tema.
Valendo-me do exemplo mais comumente utilizado para explicar este fenômeno, vamos considerar um lago raso, de águas claras, inicialmente com baixas concentrações de nutrientes na água (representados aqui pelo fósforo). Nestas condições (linha azul, Fig. 1), o lago tenderia a ter baixa biomassa de algas microscópicas (fitoplâncton), e portanto baixa turbidez. Nestas condições de água transparente, plantas aquáticas submersas seriam favorecidas, pois teriam luz suficiente para seu crescimento, além de poderem absorver nutrientes direto do sedimento (Fig. 2a). Além disto, estas plantas podem produzir substâncias alelopáticas que inibem o crescimento do fitoplâncton.
Se o lago for submetido à entrada de fósforo vindo de efluentes domésticos ou da agropecuária, vai ocorrendo uma mudança gradual: a biomassa de algas vai aumentando, a água fica mais turva, o que começa a desfavorecer a plantas submersas. Dentro desta faixa (ainda na linha azul da Fig. 1), se reduzirmos a concentração de fósforo, a turbidez será reduzida pela diminuição da biomassa do fitoplâncton. Ou seja, as mudanças são reversíveis e o sistemas fica de certa forma estável dentro desta faixa de condições.
No entanto, a partir de uma certa turbidez “crítica” (atingida no ponto A da Fig. 1), a penetração de luz torna-se insuficiente para a sobrevivência das plantas submersas e o ecossistema pode sofrer uma mudança abrupta (catastrófica) para uma condição nova, dominada por fitoplâncton, com alta turbidez (linha verde, Fig. 1). Nesta condição — atingida com o aumento da concentração de fósforo — a deposição de matéria orgânica pro sedimento aumenta, favorecendo a atividade de organismos bentônicos, como peixes e macroinvertebrados. Estes provocam a ressuspensão de nutrientes e partículas para a coluna d’água pelo processo de bioturbação, reforçando a manutenção da alta biomassa de fitoplâncton e da alta turbidez (Fig. 2b). Nestas condições, o fitoplâncton tende a ser dominado por cianobactérias, as quais podem ser tóxicas para o homem e outros organismos. Além disso, na ausência das plantas submersas, o sedimento fica também mais sujeito à ressuspensão física pela ação dos ventos sobre a água.
Reparem que esta mudança catastrófica foge à tendência gradual de mudança que o sistema vinha experimentando em resposta à mudança na variável controladora (no caso, o fósforo). Para um pequeno incremento de fósforo (indicado na Fig. 1), o sistema pode pular de uma condição para a outra. Até aí tudo bem: se a gente conseguir reduzir a concentração de fósforo de volta a uma valor no qual, antes, o lago se encontrava com água transparente e plantas submersas, o sistema voltará então para esta condição inicial, não? Neste caso, quando o sistema apresenta o tipo de comportamento descrito aqui (chamado, tecnicamente, histerese), a resposta é NÃO. O sistema passa a funcionar dentro de uma nova faixa de estabilidade (linha verde, Fig. 1), com uma nova relação de variação gradual entre a variável controladora (fósforo, no caso) e a variável de estado do ecossistema (no caso, a turbidez). Nesta condição, mesmo que a variável controladora sofra um decréscimo equivalente ou até maior ao incremento (indicado na Fig. 1) que causou a mudança catastrófica de estado, o sistema apresenta resistência para voltar à condição inicial. Para trazer o lago de volta à condição de baixa turbidez e com presença de plantas submersas, seria necessária uma redução drástica da concentração de fósforo na água (abaixo do ponto B, Fig. 1), o que pode ser bastante difícil na prática.
Notem pelo exemplo que, para um determinada faixa de valores da variável controladora (região sombreada, Fig. 1), o sistema pode se manter estável (ou seja, resistente a mudar de estado) em qualquer uma das duas condições contrastantes. Daí serem chamadas estados estáveis alternativos. E aqui reside um ponto importante: não basta um sistema apresentar bimodalidade de uma característica ambiental ao longo do tempo — como um lago que historicamente era dominado por plantas aquáticas e passou depois a ser persistentemente dominado por algas — para que digamos que o sistema apresenta estados estáveis alternativos. Para caracterizamos estados estáveis alternativos, são necessárias duas condições básicas: 1) a transição de um estado estável para o outro é abrupta e pode ser causada por uma mudança pequena na variável controladora; 2) Mesmo que a variável controladora retorne à condição imediatamente anterior a essa transição brusca, o sistema resiste a voltar a este estado, mantendo-se estável na nova condição alcançada. Às vezes um sistema não retorna à condição inicial, desejada, porque nunca “recebeu uma chance” de retorno: simplesmente não se tentou ou não se conseguiu retornar a variável controladora para magnitudes anteriores à transição crítica.
O que faz com que estes estados alternativos sejam estáveis? Como descrevemos no exemplo acima acima, as condições típicas de cada estado alternativo favorecem que o lago permaneça nesta condição. No estado de água transparente e com vegetação, as plantas desfavorecem a suspensão de sedimentos e nutrientes pelos ventos e liberam substâncias que inibem o crescimento do fitoplâncton, favorecendo a manutenção deste estado. Em contrapartida, no estado turvo e sem vegetação, a turbidez aumentada pelo fitoplâncton sombreia a coluna d’água, impedindo o retorno das plantas submersas. A maior ressuspensão de sedimentos e nutrientes por organismos bentônicos e pelo vento neste estado reforçam esta condição de alta turbidez, conferindo estabilidade ao sistema neste estado. Isto é algo muito comum nos sistemas biológicos, o que chamamos de mecanismos de retroalimentação positiva (ou feedback positivo). Estes mecanismos é que fazem o sistema resistir à mudança de estado, conferindo estabilidade ao mesmo dentro destes estados alternativos.
Um último aspecto que gostaria de ressaltar é que, quando a variável controladora encontra-se dentro da faixa que comporta mais de um estado estável alternativo (região sombreada, Fig. 1), distúrbios naturais ou induzidos pelo homem que afetem variáveis de estado do sistema (no nosso exemplo, a turbidez) podem fazer o sistema saltar de um estado estável para outro. Considerando nosso lago, uma tempestade intensa ou a entrada de sedimentos por uma enxurrada no lago e que aumentasse a turbidez acima do valor crítico faria o sistema saltar para o estado turvo e sem vegetação. Em contrapartida, uma retorno para o estado de água transparente e com plantas submersas por ser facilitado pela redução da turbidez abaixo do valor crítico, pela remoção de biomassa fitoplanctônica. Isto pode ser obtido pela indução de uma cascata trófica por biomanipulação do lago, seja pela remoção massiva de peixes zooplanctívoros ou pela introdução de peixes piscívoros. Estas medidas reduziriam a pressão de predação sobre zooplâncton, favorecendo o aumento destas populações e do forrageamento sobre o fitoplâncton. Desta forma, o lago poderia retornar ao estado de água transparente mesmo sem uma redução substancial da concentração de nutrientes.
Me desculpo com os leitores por ter-me restringido especificamente a este exemplo tradicional e específico da limnologia. Se o fiz, foi pela minha maior familiaridade com o mesmo e para tentar “destrinchar” o fenômeno com a melhor clareza possível. Mas a ocorrência de estados estáveis alternativos dá-se também sob outras condições e não apenas em sistemas aquáticos (e.g., Fletcher et al. 2014, Staver et al. 2011). Muda o meio (aquático ou terrestre), o tipo de ambiente, as variáveis controladoras e de estado; mas o comportamento do sistema e o poder de estabilização pelos mecanismos de retroalimentação positiva, são basicamente os mesmos.
Por fim, devo dizer que considero este um tema te particular relevância para o conhecimento dos estudantes das ciências ambientais. Particularmente pela suas implicações para o manejo e a restauração de ecossistemas. Isto porque a ocorrência deste fenômeno impõe grandes dificuldades para trazer os ecossistemas degradados de volta a condições desejadas, uma vez que condições críticas tenham sido ultrapassadas. Ainda mais quando as mudanças catastróficas tenham sido causadas por mudanças de variáveis ambientais de difícil reversão.
Um exemplo é o risco que tem sido apontado de “savanização” da Floresta Amazônica pela ação conjunta do desmatamento e de mudanças glogais que reduzem a precipitação na região (Staver et al. 2011, Fearnside 2006). Dada a importância da floresta na manutenção da umidade e na movimentação do ciclo hidrológico, esta contribui para a manutenção das condições climáticas locais que favorecem sua própria existência (retroalimentação positiva). Com o desmatamento progressivo, o clima da região pode se tornar mais seco, desfavorecendo o restabelecimento da floresta, passando a favorecer uma vegetação de cerrado. O mesmo valeria para este nova condição com relação aos mecanismos estabilizadores, visto que este tipo de vegetação não favorece a manutenção de um clima úmido como a floresta. Aliado à redução de chuvas esperada para a região com as mudanças climáticas, o desmatamento poderia levar a uma mudança praticamente irreversível de um tipo de bioma para outro, uma vez que seria extremamente improvável uma reversão das mudanças climáticas na magnitude necessária para forçar uma alternância para o estado estável alternativo de floresta.
Scheffer, M. (1999). Searching explanations of nature in the mirror world of math. Conservation Ecology, 3(2): 11.
Scheffer, M. e Carperter, S.R. (2003). Catastrophic regime shifts in ecosystems: linking theory to observation. Trends in Ecology and Evolution, 18(12): 648-656
Fearnside, P.M. (2006). Desmatamento na Amazônia: dinâmica, impactos e controle. Acta Amazônica, 36(3): 395-400.
Staver, A.C., Archibald, S. e Levin, S. (2011). The global extent and determinants of savanna and forest as alternative biome states. Science, 334 (6053): 230-232.
Fletcher, M.S., Wood, S.W. e Haberle, S.G. (2014). A fire-driven shift from forest to non-forest: evidence for alternative stable states? Ecology, 95(9): 2504–2513.
Adorei o artigo…meu pós doc inclui em parte esta teoria. Gostaria de seu email professor…