O que você pensa quando falamos em biodiversidade? Não há dúvidas que grande parte das pessoas pensaria imediatamente em florestas exuberantes, plantas diversas com belas flores e animais dos mais diferentes e coloridos, mas principalmente mamíferos carismáticos. Essa é a resposta mais comum. Pesquise por imagens relacionadas ao termo “biodiversidade” no Google e a resposta será a mesma. De fato, toda essa diversidade e os processos evolutivos pelos quais ela foi gerada ao longo de milhões de anos é impressionante e por isso desperta com razão a curiosidade e admiração de muitas pessoas. Porém, quantos de nós lembra da parcela invisível dessa biodiversidade, ou seja, dos microorganismos?
A verdade é que microorganismos estão por toda a parte. Eles podem ser encontrados nos mais diversos ambientes, desde ambientes extremamente gelados, como geleiras, a ambientes muito quentes, como fontes geotérmicas. Podemos encontrá-los também no fundo dos oceanos, no ar, sobre a sua pele ou até mesmo na tela do computador em que você está lendo esse texto neste momento. Portanto, a vida, ao contrário do que diz Lenine, não é rara coisa nenhuma e pode ser encontrada nos quatro cantos do planeta Terra, inclusive em ambientes extremos!
Esses seres invisíveis não são apenas onipresentes, mas também muito diversos. Fato é que microorganismos são muito mais diversos que macroorganismos. Mesmo em escala de milímetros, populações microbianas podem ser geneticamente muito distintas entre si. Alguns estudos apontam que amostras de solo distantes 1 cm uma da outra podem conter comunidades microbianas até 90% geneticamente distintas uma da outra! Por essa razão, entender padrões espaciais da diversidade microbiana é uma tarefa extremamente complicada.
Você pode imaginar que por serem tão numerosos e diversos, os microorganismos desempenham papéis importantes na natureza. Se sim, você está certíssimo! Eles são tão importantes que existe um ramo da ciência que estuda especificamente os processos pelos quais esses organismos são responsáveis e a relação desses entre si e com o ambiente: a Ecologia Microbiana. Mas se eles são invisíveis, como é possível estudá-los? Essa é uma pergunta pertinente e ainda é um fator limitante para o progresso dessa área do conhecimento. No entanto, ao longo do tempo foram desenvolvidas ferramentas e métodos científicos que possibilitaram estudos cada vez mais avançados. Esta relação é uma característica da ciência em geral e se dá de uma forma muito forte no caso da ecologia microbiana. Possuir criatividade, boas ideias e fundamentação teórica permitem grandes avanços científicos em outras áreas da ecologia, porém apenas isso não resolve o problema na ecologia microbiana, cujo estudo é diretamente dependente do desenvolvimento de novos métodos e ferramentas que são relativamente mais caros e complexos.
A porta do mundo microscópico foi aberta ainda no século XVII pelo holandês Von Leeuwenhoek, inventor do microscópio, considerado o “pai da microbiologia” e que foi o primeiro pesquisador a observar micróbios em uma amostra de água de uma lagoa. No entanto, a ecologia microbiana só surgiu como um campo de pesquisa em meados do século XX. O clássico “The trophic-dynamic aspect of ecology” de Lindeman (1942), colocava as bactérias como centrais na dinâmica trófica de lagos, apesar de ainda não apresentar evidências da importância dos microorganismos para o fluxo de carbono, energia e nutrientes. O verdadeiro reconhecimento da relevância de microorganismos para processos globais só começou em 1945 com o geólogo soviético Vladimir Vernadsk. Já em 1951 Ridley também publicava um trabalho que reconhecia a importância de microorganismos para os ciclos geoquímicos dos oceanos, mas citava que havia limitações metodológicas para a realização de estudos mais aprofundados.
Desde então novos métodos foram propostos e permitiram o desenvolvimento da ecologia microbiana. A quantificação da abundância e biomassa microbiana hoje é possível graças à microscopia de epifluorescência e citometria. A respiração microbiana também passou a ser facilmente mensurável através do registro da variação de oxigênio em incubações de amostras de água filtradas de acordo com a partição de organismos de interesse. A utilização de radioisótopos permitiu a medição da produção bacteriana e finalmente melhorias na química ambiental também permitiram uma melhor quantificação da influência microbiana sobre os ciclos biogeoquímicos. Até mesmo vírus passaram a ser objeto de estudo ecológico. Mais recentemente a adoção de métodos moleculares nos estudos ecológicos com microorganismos possibilitaram grandes avanços no nosso conhecimento e abriram amplamente o leque de possibilidades no estudo do mundo microbiano.
A atividade metabólica microbiana pode causar mudanças químicas significativas no ambiente e por isso é tão estudada. Alguns microorganismos são autotróficos e por isso utilizam CO₂ para produzir biomassa, enquanto outros são heterotróficos e participam ativamente na degradação e ciclagem de matéria orgânica e inorgânica, liberando CO₂ para o ambiente. Como se não bastasse, alguns desses organismos microscópicos são mixotróficos, ou seja, comportam-se como ambos autotróficos e heterotróficos. Dessa forma, a atividade microbiana está intimamente relacionada ao balanço de CO₂ na coluna d’água e na atmosfera. Processos microbianos também estão ativamente ligados a outros aspectos do ciclo do carbono como a produção e consumo de metano, um potente gás-estufa, em condições anaeróbias. Além do carbono, existem etapas do ciclo de outros elementos essenciais a vida que dependem exclusivamente de microorganismos. O ciclo do nitrogênio, por exemplo, é intimamente ligado aos microorganismos! Ele não se completaria se não fossem os microorganismos e sua impressionante biodiversidade.
Já sabemos então que, apesar de invisíveis, microorganismos são muito numerosos e são responsáveis por processos importantes para manutenção de serviços ecossistêmicos de relevância global. Mas ainda precisamos aprofundar nosso conhecimento sobre o assunto e entender melhor como esses processos estão relacionados por exemplo com a heterogeneidade ambiental. Um trabalho conduzido em rios amazônicos de autoria do prof. Vinicius Farjalla, do Laboratório de Limnologia – UFRJ, foi recentemente publicado e discute essa questão (aqui). Além disso, é de interesse geral que esses processos sejam mantidos e seria importante tentar prever como o metabolismo microbiano e o funcionamento dos ecossistemas serão alterados com as mudanças climáticas. Essa questão foi abordada experimentalmente pelo doutorando Saulo Jacques e pode ser lida aqui.
Escrever sobre ecologia microbiana já rendeu a publicação de vários livros e artigos científicos. Poderia ter discorrido aqui sobre dinâmicas populacionais, sobre interações ecológicas microbianas (predação, competição, mutualismos, etc), sobre a importância de microorganismos para o funcionamento do nosso próprio organismo e até sobre processos microbianos utilizados pela indústria. Porém, nesse texto tive o objetivo de passar brevemente pela definição e histórico da ecologia microbiana, demonstrar basicamente o papel fundamental dos microorganismos para o funcionamento dos ecossistemas e como os processos desempenhados por eles sustentam ciclos biogeoquímicos essenciais para existência da vida no nosso planeta. Esse tema foi abordado brilhantemente por Cotner e Biddanda que em 2002 publicaram o trabalho “Small Players, Large Role: Microbial Influence on Biogeochemical Processes in Pelagic Aquatic Ecosystems” (Pequenos atores, grande função: Influência microbiana sobre processos biogeoquímicos em ecossistemas aquáticos pelágicos), cujo título particularmente gosto muito pois sintetiza de forma sublime a essência da ecologia microbiana, que na minha interpretação vai além do âmbito científico: o que é essencial nem sempre é perceptível aos olhos.
Referências:
Cotner, J. B., & Biddanda, B. A. (2002). Small players, large role: microbial influence on biogeochemical processes in pelagic aquatic ecosystems. Ecosystems, 5(2), 105-121.
Lindeman R. L. 1942. The trophic-dynamic aspect of ecology. Ecology 23:399.
Riley G. A. 1951. Oxygen, phosphate, and nitrate in the Atlantic Ocean. Bull. Bingham Oceanogr Col 13:1–126.
Suttle C. A. 1993. Enumeration and isolation of viruses. In: Kemp PF, Sherr BF, Sherr EB, Cole JJ, editors. Handbook of methods in aquatic microbial ecology. Boca Raton (FL): Lewis. p 121– 34.
Vernadsky W. I. 1945. The biosphere and the noosphere. Am Sci 33:1–12.
Agradecimentos:
André M. Amado (Departamento de Oceanografia e Limnologia – UFRN) e Saulo M. Jacques (Laboratório de Limnologia-UFRJ, Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Ecologia e Evolução – UERJ) por valiosas contribuições.
Parabéns pelo post Pedro, pois além explorar tema relevante mas pouco conhecido, o fez de maneira atraente e completa pelos itens que foi abordando. Vejo muito espaço para tratarmos diversos aspectos da limnologia desta forma que você fez, ampliando o papel do blog, pois seu post vai atingir uma audiência muito grande, para muito além dos nossos pares limnólogos. Você fez um excelente serviço de divulgação da ciência e assim ajuda-nos a melhor entender o mundo, a vida, livrando-nos dos “demônios” que a assombram, usando clássica idéia de Carl Sagan. E para terminar, lendo seu post não consegui me desligar de uma outra ideia, a de M. Goulding, em seu livro Vida Rica em Água Pobre. Lá o foco são os peixes, mas claro que prá nós, teimosos sistêmicos que somos, é difícil não lembrar do incessante trabalho daqueles que são “invisíveis aos olhos desarmados”.
Obrigado pelo comentário Reinaldo! Fico feliz que eu tenha conseguido atingir meu objetivo, que era de fato escrever um texto de divulgação científica que fosse atrativo para o público em geral. Vejo que o blog é um espaço excelente para isso e em breve espero poder contribuir mais. Agora fiquei curioso para ler o livro que você citou.