Geralmente quando profissionais das ciências da natureza, como biólogos, ecólogos, geógrafos, etc., comentam sobre seus trabalhos de campo, costumam escutar de seus amigos de outras áreas “Caramba! Você só viaja! Que moleza!!”. Mas essa visão é enviesada pela imagem vendida por programas de televisão que mostram só o lado bom de um trabalho de campo: as belas paisagens, o contato com animais silvestres e a visita a locais onde quase ninguém tem acesso. Mas, é importante ressaltar que existe muito (muito mesmo!) trabalho por trás das belas fotos postadas nas redes sociais, trabalho esse na maioria das vezes exaustivo e com um série de riscos e perigos.
Existe uma série de etapas prévias que culminam em um trabalho de pesquisa em campo. A primeira delas é obviamente o delineamento do seu projeto de pesquisa, afinal ninguém vai coletar em Fernando de Noronha só porque quer ver golfinhos. A delimitação da sua pergunta é essencial para que não ocorra perda de tempo, energia e recursos à toa. Então antes de tudo precisamos fazer uma extensa e minuciosa revisão bibliográfica. A partir disso definir quais as lacunas do conhecimento dentro da sua área de interesse (ex.: padrões espaciais da diversidade, ciclagem de nutrientes, etc.) e estabelecer suas perguntas, hipóteses e objetivos.
Estabelecida então sua pergunta, devemos ainda refletir sobre a real necessidade de se realizar um trabalho de campo. Já existem dados coletados que podem ser utilizados para responder aos seus objetivos? Um experimento se adéqua melhor a sua pergunta? Um trabalho em campo envolve uma série de variáveis que não somos capazes de controlar ou medir, seja por limitações metodológicas seja por questões logísticas, portanto pra muitas questões ecológicas um experimento controlado em laboratório pode gerar dados muito mais robustos e confiáveis. Além disso, se for preciso realizar medidas sob condições que não ocorrem naturalmente (ex.: alterações no regime de chuvas, distúrbios causados pelo aumento de salinidade), não há dúvidas, faça um experimento simulando estas condições! Todavia, se estamos buscando dados de sistemas naturais complexos e se sua pergunta envolve a necessidade de fazer medidas ou coletas sob as condições mais próximas às naturais, por exemplo: “quais são as taxas fotossintéticas de plantas aquáticas em períodos de chuva e seca em lagoas costeiras?”, e você quer incluir a variabilidade ambiental nos seus dados, vá em frente, o campo te espera. Mas esteja preparado para ouvir críticas sobre alguma coisa que você deixou de medir que certamente vai influenciar os seus resultados!
Depois de atestada a real necessidade de realizar uma coleta em campo, ainda existe muitas coisas a serem feitas antes de colocar a mochila nas costas e ir pro mato/lagoa/mar. É preciso definir muito claramente a metodologia a ser utilizada de forma a responder concisamente sua pergunta. Isto envolve a definição de uma amostragem representativa daquilo que esteja pesquisando, um desenho amostral que permita a comparação com diferentes áreas e estudos no tema e que gere dados confiáveis. Então, a definição da metodologia (forma de coleta) deve estar de acordo com o seu grupo de estudo (plantas, plâncton, insetos, aves, etc.) e com seu objetivo (coletar em transects, quadrats, armadilhas, redes….). É preciso levar em conta ainda, questões da própria biologia dos organismos como comportamento, distribuição espacial, fenologia, classes etárias, padrões de migração, etc. Ter cuidado com estes detalhes evita erros como dizer que certo animal não ocorre na região, quando na verdade ele apenas está em período migratório, por exemplo.
Além disso tudo, antes de coletar é preciso definir a quantidade e localização dos seus pontos de coleta. Dependendo da questão a ser respondida, réplicas espaciais (sua área de estudo permite replicação espacial?) ou temporais (é possível coletar ao longo do tempo?) podem ser mais ou menos adequadas. É preciso garantir a independência das réplicas sem incluir uma grande variabilidade nos dados, ou seja, incluir outros fatores que influenciam as amostras de forma diferenciada. Por exemplo, seus pontos de coleta são tão próximos que um influencia no outro, ou seja, não são independentes, ou ainda são tão distantes que não são mais comparáveis por estarem sob diferentes condições. No caso de réplicas temporais, é preciso considerar o ciclo de vida dos organismos investigados para garantir que as replicas são válidas. por exemplo, um amostragem mensal para o plâncton pode ser suficiente para ver as modificações da comunidade, mas certamente não seria uma amostragem muito adequada para mamíferos que possuem um ciclo de vida muito mais longo. Cada caso é um caso!
A amostragem deve ser pensada ainda de forma a gerar dados aos quais seja possível aplicar a estatística ou teste de hipóteses que permeiam sua pergunta. Não adianta nada coletar um monte de dados e depois não saber o que fazer com eles, tudo isso deve estar definido a priori. É preciso pensar então, se basta fazer coletas que gerem dados categóricos (ex.: presença e ausência) ou se o melhor são os dados contínuos (ex.: abundância), se a pesquisa deseja analisar relações de causa e efeito ou apenas de correlações, se é um estudo multivariado ou univariado, e mais um monte de outras coisas! Pensar todas essas questões é um trabalho árduo que exige muito estudo, mas essencial para que um trabalho de campo seja bem sucedido.
Definida todas as questões metodológicas e teóricas do trabalho de campo, existem muitas outras questões de cunho prático a serem feitas antes de finalmente irmos para aquele lugar incrível cheio de aventuras. A primeira e mais essencial de todas é: existe recursos financeiros para a realização do trabalho de campo? Uma coleta em campo pode exigir grandes quantidades de recursos, especialmente se a área de estudo for distante do seu local trabalho, centro de pesquisa ou universidade. É preciso pensar nos gastos com o translado até o local (combustível, aluguel de carro/barco, passagens aéreas/ônibus), compra de materiais (frascos, reagentes, redes, fitas métricas, etc.), equipamentos (sondas, coletores, armadilhas, gps, etc.) e os gastos com recursos humanos (mateiros, guias, barqueiros, motoristas, etc.). As agências de fomento, como o CNPq e as agências estaduais como a FAPERJ no estado do Rio de Janeiro, são as principais financiadoras da pesquisa no Brasil. Periodicamente são abertos editais temáticos ou não para que os pesquisadores possam concorrer ao financiamento, prepare-se para concorrer com vários outros projetos e pense em fontes alternativas caso seu projeto não seja contemplado por um edital de financiamento. Além disso, esses editais possuem uma série de regras sobre como os recursos devem ser gastos e alguns itens não são custeáveis (ex.: gastos com alimentação). Depois de realizar seu trabalho de campo você ainda terá que realizar uma detalhada prestação de contas e acredite, isso pode ser bastante burocrático!
Tendo os recursos para realizar o trabalho de campo, um coisa imprescindível para evitar possíveis problemas é possuir um licença junto aos órgãos ambientais para a realização de coleta de material, especialmente se esta for realizada em uma Unidade de Conservação. Na maioria do casos, as licenças para coleta de material biológico é feita pela plataforma do SISBIo do ICMBio. Para conseguir uma licença de coleta, o pesquisador já deve estar com toda a sua metodologia estabelecida e informar os espécimes que serão coletados ou ainda o tipo de amostra (água/solo/material geológico), indicando quantidades/volumes/número de indivíduos por taxón, bem como a forma em que serão acomodados/preservados, transportados, o destino final do material (museu, herbário, coleção zoológica, etc.), equipe que realizará a coleta, entre vários outros detalhes. É importante se planejar e pedir a licença com antecedência, pois sua emissão pode demorar alguns dias. Se sua coleta envolver o sacrifício de organismos, é preciso ter conhecimento e treinamento dos métodos de coleta em acordo com os princípios de bioética e a legislação da área.
O próximo passo para a realização da coleta de campo é a definição da equipe e preparação de material. Estabelecer um número ideal de pessoas em campo é primordial para que o trabalho ocorra de forma organizada e segura e evitar gastos extras com pessoas em excesso e repetições desnecessárias. Antes de ir para campo, faça um exercício mental imaginando todas as atividades a serem realizadas e quantas pessoas são necessárias para executa-las, considerando a relação custo-benefício. Em hipótese alguma vá para campo sozinho, a não ser que seja o quintal da sua casa, pois imprevistos acontecem e isso pode ser perigoso. Determine as quantidades dos materiais a serem levados pra campo, separe, lave e identifique com bastante antecedência, pois aqueles potes que você tinha certeza que estavam disponíveis, podem ser que estejam sendo utilizados por outra pessoa. Não esqueça de preparar seu caderno de campo, já com todos os pontos de coleta listados e informações relevantes. Faça novamente o exercício mental das atividades em campo, imaginando passo-a-passo as etapas de cada uma, e elabore um checklist de todo o material que será necessário (sacos, fita adesiva, papel, etc.) desde as coisas mais simples até as mais complexas. Dependendo do trabalho de campo, a preparação de material pode levar bastante tempo!! Organize-se!
Repasse com toda a equipe à metodologia e forma correta de manuseio dos equipamentos antes de chegar ao ponto de coleta, isso evita a perda de tempo explicando possíveis dúvidas que venham a surgir no momento da coleta. Todavia, esteja preparado pois a natureza é dinâmica e você pode encontrar uma situação em campo completamente diferente da previamente imaginada e isso pode exigir uma adaptação da metodologia estabelecida. Antes de ir pra campo é preciso definir ainda o tempo necessário para realizar todo o trabalho de campo: um dia? Uma semana? Coletar em horários/dias diferentes influencia nos meus dados? Isso implica ainda em pensar em toda a logística relacionada a permanência em campo, como por exemplo alimentação e alojamento. A área de estudo dispõe de local para pernoite ou é necessário acampar? É preciso comprar marmitas/lanches para a equipe ou a área de estudo dispõe de cozinha? Um pesquisador de campo deve estar preparado para enfrentar todo tipo de perrengue como dormir no chão duro, passar o dia todo na mata molhado/sujo, caminhar horas carregando peso, tomar banho frio e as vezes passar dias comendo sanduíches. Nem tudo são apenas paisagens bonitas!
Atenção extra antes de ir pra campo deve ser dedicada aos cuidados mínimos de segurança. A equipe deve ter em mente que um trabalho de campo é como se fosse uma visita a casa de um vizinho, a diferença é que esta casa é habitada por uma enorme variedade de formas de vida que incluem animais silvestres potencialmente perigosos para os seres humanos. Portanto, devemos respeitar o espaço dos animais, não tentar se aproximar em demasia, executar apenas as atividades previstas e sempre estar acompanhado de pessoas com experiência em desenvolver atividades naquele local. O uso de trajes adequados e equipamentos de segurança (perneiras, luvas, camisa de manga comprida, etc.) são muitas vezes a única forma de prevenção contra acidentes graves e fatais. O campo pode ser um local extremamente inóspito!
Quando finalmente em campo, o pesquisador deve estar atento a execução das atividades, a correta acomodação e preservação das amostras e seu transporte. É preciso considerar o tempo dispensado desde que as amostras são coletadas até o seu processamento. Se for o caso de organismos que devem ser mantidos vivos ou amostras que são sensíveis a mudança de temperatura, deve ser providenciado um acondicionamento diferenciado. No caso de medidas in situ, é preciso verificar a necessidade de calibração dos equipamentos às condições ambientais locais (temperatura, altitude, etc) para que não ocorram erros nas medições das variáveis investigadas. Então, depois de ter feito todas as coletas, acomodado todas as amostras, conferido se todos os dados estão no caderno de campo, se todos os equipamentos e materiais foram devidamente guardados, talvez sobre um tempo pra apreciar a paisagem e tirar umas fotos bonitas!
Mas o trabalho de campo não acaba quando retornamos da área de estudo. Na verdade ele está só começando! Ainda é preciso lavar e guardar todos os equipamentos e materiais utilizados, guardar as amostras que serão processadas mais tarde e analisar aquelas que precisam de processamento rápido. Prepare-se para contar, medir, triar, identificar espécimes, fazer análises químicas e tantas outras coisas por ainda um bom tempo após a coleta! No fim de todo o trabalho de campo, sua preparação e execução culminarão em um conjunto de dados (números!), geralmente em tabelas gigantescas, que resultarão por sua vez em uma outra tabela de dados mais resumida ou uma figura. Seus resultados então, se bem delineados e coletados com presteza e cuidado, poderão contribuir para o conhecimento sobre o local e/ou organismos estudados.
O mais importante de se realizar um trabalho em campo, é ter claro as responsabilidades que este tipo de trabalho implica. Responsabilidades estas diante da sociedade como um todo, diante da academia e diante de nós mesmos. É reconhecer que poder desenvolver a nosso trabalho e nossa pesquisa em determinados lugares, não é só um privilégio, mas uma função que exige de nós a devida contrapartida, seja contribuindo para o desenvolvimento tecnológico, social e do conhecimento com um todo mas também para que estes locais incríveis e instigantes permanecem por aqui para que muitos outros ainda possam apreciar e estudar!
Excelente texto Rayanne. Parabéns!