Desde muito cedo, na escola, somos apresentados ao conceito de cadeia alimentar. É praticamente impossível sair da escola sem nunca ter visto uma figura como esta abaixo!
Por definição, a cadeia alimentar é uma unidade de transferência de energia através de uma série de relações entre organismos que consomem e são consumidos. Como na figura apresentada, essa transferência energética se dá de forma unidirecional e linear, sempre fluindo dos produtores primários (as plantas) em direção ao predador de topo, representado por uma espécie que não possui nenhum tipo de predador. Apesar do fácil entendimento desse conceito, as relações alimentares existentes na natureza, em sua grande maioria, não são dessa forma. As cadeias tróficas não são sequências isoladas, havendo múltiplas conexões entre os consumidores e seus recursos.
O padrão de fluxos de energia e materiais entre organismos, através de múltiplas e reticuladas conexões entre os consumidores e seus recursos é chamado de teia trófica, cujo conceito tem sido um tema central em Ecologia desde o seu desenvolvimento.
As abordagens tradicionais nos estudos de teias tróficas enfatizam a transferência de energia a partir dos produtores primários, sob a forma da matéria orgânica (MO) viva das plantas. Sob essa perspectiva, a energia dos produtores primários é consumida e assimilada pelos consumidores primários e estes, por sua vez, são consumidos e convertidos em biomassa pelos consumidores secundários e assim por diante. A porção da produção primária que não é consumida e os organismos que, porventura, morram irão constituir o aporte de detritos para o ecossistema. Esse detrito originado dentro do próprio ecossistema pode ser novamente transformado em biomassa e viabilizado para os níveis tróficos superiores, através da ação dos decompositores. A situação anterior descreve um exemplo de teia trófica baseada em MO autóctone, isto é, gerada dentro do próprio ecossistema. Contudo, nem toda MO que constitui a base energética das teias tróficas é autóctone. Em muitas circunstâncias, o detrito gerado deixa o ecossistema em que foi originado e é transportado para outro. Essa MO de origem externa ou alóctone é a fonte de energia e nutrientes para os organismos de muitas teias tróficas. Para ser assimilada pelos níveis tróficos superiores, a maioria da MO alóctone sob a forma de detrito (especialmente os de origem vegetal) exige uma cadeia de processamento adicional, formada por decompositores, detritívoros e consumidores de fungos e bactérias.
Especificamente sobre as teias tróficas dos ecossistemas aquáticos continentais, elas podem ser baseadas tanto na MO autóctone quanto por aquela de origem alóctone. Nesses ambientes, a MO autóctone é essencialmente produzida por algas e macrófitas aquáticas Já a MO alóctone, pode ser compostas basicamente por detritos foliares, em ambientes como riachos e poças. Cerca de 90% da produção primária terrestre escapa da herbivoria e se torna detrito. Por estarem em posição mais baixa na paisagem, esse detrito é facilmente carreado para os ecossistemas aquáticos.
Uma das principais diferenças entre as fontes de MO citadas acima está em seu conteúdo nutricional, o que embasa questionamentos sobre a qualidade da MO alóctone enquanto recurso alimentar. Os trabalhos iniciais sobre o fluxo de energia em teias tróficas desses ecossistemas consideravam a quantidade de recurso como um fator chave para a eficiência na transferência de energia nas teias tróficas, enquanto que, atualmente, esse destaque tem sido dado à qualidade nutricional do recurso. Apesar dos detritos foliares serem, muitas vezes, o recurso alimentar mais abundante, o carbono de origem algal pode ser um recurso-chave devido a sua alta qualidade. As plantas terrestres possuem uma grande proporção de tecidos de transporte e sustentação, compostos basicamente de lignina e celulose, o que as torna ricas em carbono e, portanto, com um menor valor nutricional. Em contraste, as algas possuem uma proporção muito maior de estruturas fotossintetizantes, ricas em nitrogênio e fósforo – o que as torna um alimento de maior valor nutricional, de maior qualidade.
Apesar dessas claras diferenças entre as qualidades das MO autóctone e alóctone, há um debate na literatura recente sobre a importância de cada uma delas como fonte energética para teias tróficas aquáticas. Muitos trabalhos recentes, publicados em revistas com alto índice de impacto, têm mostrado resultados e conclusões contrastantes em relação à importância das MO de diferentes origens. Enquanto alguns mostram que a MO alóctone é a principal base das teias tróficas aquáticas, outros mostram o resultado oposto, argumentando que a MO autóctone quem, de fato, cumpre esse papel. Além disso, outros estudos já mostram um resultado intermediário, mostrando que, em alguns grupos de organismos aquáticos, a proporção de MO alóctone assimilada pelo organismo varia e que, portanto, a importância relativa dessas duas fontes de energia seria contexto-dependente. O nosso trabalho como cientista é, justamente, tentar contribuir para o avanço do conhecimento da área que estudamos. Mas, como contribuir de maneira efetiva para o esclarecimento dessa questão tão debatida? Entender o que, realmente, sustenta os ecossistemas aquáticos é uma questão que está longe de ser resolvida e, mais importante que isso, é a sua relevância para o desenvolvimento de outras questões ecológicas relacionadas a esse assunto, como a estabilidade das teias tróficas baseadas em MO autóctone e alóctone.
A estabilidade das teias tróficas pode ser entendida como a capacidade de persistência das relações alimentares entre os organismos e, consequentemente, do fluxo de energia no ecossistema após uma perturbação. O que tem sido mostrado nos estudos sobre estabilidade de teias tróficas é que aquelas baseadas em detrito são mais estáveis do que suas contrapartes baseadas em produtores primários (como algas, por exemplo). Os pesquisadores acreditam que o efeito estabilizante do detrito reside no fato dele ser um reservatório persistente de energia. Contudo, além dos estudos que geraram essas conclusões terem sido baseados em modelos matemáticos, eles desprezam a qualidade nutricional que existe entre essas duas fontes energéticas.
Tendo em vista todas essas questões, o que eu me proponho a fazer durante o desenvolvimento da minha tese de Doutorado é utilizar as bromélias-tanque como ecossistemas-modelo para tentarmos entender um pouco mais sobre a importância das MO autóctone e alóctone para as teias tróficas aquáticas. Além disso, darei mais um passo nessa temática, tentando entender como essas duas principais formas de MO nos ambientes de água doce (algas e detritos) podem contribuir para a estabilidade das teias tróficas aquáticas.
Desde a graduação, tenho me dedicado ao estudo das bromélias-tanque no teste de teorias ecológicas e acredito que elas sejam perfeitas para serem utilizadas em trabalhos que busquem o entendimento da dinâmica de teias tróficas. Muitos trabalhos de teias tróficas são reféns do chamado “efeito de amostragem”. A coleta dos organismos que, posteriormente, serão incluídos na descrição das relações alimentares da teia trófica, muitas vezes tem o seu limite definido de maneira arbitrária – geralmente, dado pelas possibilidades logísticas e financeiras do grupo de pesquisa. Por isso, nem todos os organismos que deveriam estar presentes na teia trófica são coletados tornando-as uma representação incompleta das relações alimentares existentes naquela comunidade. Já as bromélias-tanque constituem um ecossistema com limites visualmente bem definidos dentro de uma paisagem e, por isso, somos capazes de coletar praticamente todos as comunidades associadas. Assim, teias tróficas bromelícolas não são “caricaturas” das relações alimentares entre as espécies, e sim uma representação fiel desta. Além disso, nos ecossistemas bromelícolas podemos encontrar tanto ambientes aquáticos claramente baseados na MO alóctone quanto autóctone.
Quando pensamos em uma ideia para desenvolver durante o Doutorado, temos que pensar em uma ideia inédita, algo que ninguém ainda fez. Após, ter a tal ideia em mente, começamos a pensar como testá-la e, geralmente, nos deparamos com grandes desafios experimentais – nesse ponto, entendemos porque ninguém fez ou teve sucesso ao desenvolver aquela ideia! Estou encarando, no próximos 4 anos, o desafio de responder questões ainda inexplicadas na Ecologia de Ecossistemas. Comentários e sugestões são muito bem-vindas!!!
Parabéns, achei ótimo seu post. Principalmente quanto a sua didática discussão à respeito da qualidade de MO dos principais produtores primários em ecossistemas aquáticos e sobre o debate da literatura atual à respeito da origem da MO que sustenta estes ambientes.
Tenho duas perguntas, sendo a primeira sobre o debate. Estes diferentes estudos que contrastam resultados e conclusões à respeito da origem de MO, inclusive aquele terceiro grupo de estudo que demonstra variação da MO que compõe os organismos foram realizados em uma mesma classe de ecossistema e sob mesma perspectiva, sendo o contraste obtido no final ou já foram fundamentados sob perspectivas distintas?
Segunda pergunta é sobre a foto utilizada do Pedro Trasmonte e do Nicholas Marino. Onde você indica “baseado em ecossistema autóctone” você se refere à deposição de folhas de outros vegetais dentro do copo da bromélia que representa a maior parte de disponibilidade de recurso?
Já o segundo exemplo “baseado em ecossistema autóctone” representa uma colonização de pequenas algas filamentosas no interior do copo?
Não conheço muito a respeito da anatomia de bromélias e nem sobre a interação com outros vegetais que colonizam seu interior, portanto, o que representa as pequenas estruturas verdes no interior da primeira foto e as pequenas estruturas em lilás?
Agradeço pela atenção e antes que eu esqueça, achei também bem legal a conexão com seu plano e a justificativa do seu trabalho.
Um abraço,
Rodrigo
Olá, Rodrigo! Obrigada pelo comentário!
Em relação a sua primeira pergunta: esse trabalhos foram todos realizados em lagos (temperados, inclusive), alguns sob a perspectiva de teia trófica e outros focando em alguns grupos como, por exemplo, o zooplâncton, capaz de se alimentar tanto das algas quanto da MO de origem terrestre. Assim, são encontrados resultados contrastantes em relação a trabalhos fundamentados sob a mesma perspectiva. Um exemplo que eu posso te citar, é o trabalho de Cole et al. (2006), que mostraram que o zooplâncton assimila entre 33-73% da MO alóctone. Alguns anos depois, em 2011, Francis e colaboradores citam esse trabalho, argumentando que esse resultado foi encontrado porque amostragem adotada subestima a contribuição do fitoplâncton encontrado em regiões mais profundas. Consegui te convencer de quão árduo é o debate? rs
Já sobre a sua segunda pergunta, quando eu falo sobre o material alóctone que entra no ecossistema bromelícola, eu me refiro justamente às folhas que podem cair dentro delas. A MO autóctone é composta, de fato, por algas (filamentosas ou não). Em ambas as fotos, vemos pequenas flores e muitas projeções que as circundam. Esse conjunto é a inflorescência da bromélia.
Consegui esclarecer as suas dúvidas?
Abraços!