* Os textos dessa seção são opiniões pessoais dos autores e não representam a posição do Laboratório de Limnologia
Fazem mais ou menos 3 anos da minha primeira visita ao Lagoa Batata no Pará. Me lembro como se fosse ontem a minha enorme empolgação, não só por estar na Amazônia, mas pelo o que aquilo significava na minha carreira dentro da Limnologia. O Lago Batata é formado pelo Rio Trombetas, com uma área estimada em 28,4 Km² e profundidade variando entre 2m e 9m devido ao pulso de inundação.
Mas o que o Lago Batata tem de especial? Durante o período de 1979 a 1989, dez anos, ele recebeu diariamente rejeito proveniente da lavagem da bauxita, minério utilizado para a produção do alumínio. Aproximadamente 30% da área do Lago Batata foi impactada, fazendo que parte deste ambiente se tornasse a própria lagoa de contenção daquele empreendimento de exploração mineral. O descarte de rejeito de bauxita teve consequências avassaladoras, como o assoreamento, que alterou as características do sedimento natural e o aumento da turbidez da água. Ainda hoje, após mais de 20 anos após os lançamentos, os efeitos afetam todo a vida daquele lago, sua funcionalidade e seu aspecto estético.
Graças a diversos esforços de equipes multidisciplinares iniciadas pelo Laboratório de Limnologia/UFRJ principalmente na recomposição da mata de Igapó, alguns resultados positivos já podem ser observados, como o restabelecimento do metabolismo do lago e comunidades de microorganismos, invertebrados e peixes que já usam partes da área impactada como zona de reprodução e alimentação. Entretanto, precisaremos ainda de muitos estudos para avaliar o grau de recuperação do ambiente e talvez mais algumas dezenas de anos para pensar em dizer que o Lago Batata é um paciente que conseguiu sair do UTI.
Pra quem conhece um pouco mais de perto essa história, sabe o que significa, no sentido mais profundo, a expressão: impactado pelo lançamento de rejeito. Entender isso está muito além de quantificar o quanto foi destruído em termos de área ou toneladas de peixes mortos ou concentração de sólidos em suspensão. Significa que não importa quando tempo você viva, 20, 30, 50 anos, o impacto vai estar lá. Mitigado? Talvez. Mas o rastro da destruição permanecerá como uma cicatriz, uma doença incurável, que modifica, que transforma, que deforma o ambiente para algo que o curso natural da vida nunca o levaria.
O desastre ambiental ocorrido pelo rompimento das barragens de contenção de rejeitos em Mariana no estado de Minas Gerais, sem a menor sombra de dúvida é um dos maiores desastres ambientais desse país, se não for o do mundo (levando em consideração impactos provenientes da exploração mineral). Pra um país que gosta tanto de títulos (maior floresta tropical do mundo, rio mais caudaloso do mundo, etc.), vai carregar pra sempre no peito essa tragédia e essa vergonha. Os milhões de litros de rejeito despejado devastaram cidades inteiras, destruíram vidas, lares, histórias. O cenário é condizente com as piores guerras: destruição e morte por todos os lados. Tristeza, angústia, medo, dor.
Não me digam que foi um acidente, não faça isso! Uma tragédia anunciada dessas proporções não pode ser um acidente, o nome verdadeiro disso é negligência, irresponsabilidade. O impacto já atinge um raio de mais de 100km de distância do rompimento, o Brasil foi esfaqueado e a cicatriz espirra rejeito manchando a face de todos nós. As cenas da avalanche que chega ao Rio Doce são as que mais me doem… não deixo de me lembrar do Lagoa Batata. Quantas e quantas gerações serão necessárias para pensar novamente em um Rio Doce?? Será que é possível novamente pensar em Rio Doce?? Um Rio extremamente importante pra região sudeste, um rio que já sofria cronicamente as pancadas que insistentemente dávamos nele com uma série de impactos antrópicos (lançamento de esgotos, descaracterização do entorno, assoreamento, etc), como cegos que não querem ver. Elegemos governos atrás de governos em que a questão ambiental é sempre segundo (terceiro, quarto…) plano. Encaramos espécies endêmicas como empecilhos ao desenvolvimento. Destruímos, matamos, devastamos todos os dias numa lógica consumista que precisa cada vez mais de energia, de minério, de exploração, de vidas. Mas a conta sempre chega. Sempre. O problema é quem é que vai pagá-la. Privatizamos os lucros, socializamos os prejuízos. O povo de Mariana está pagando a conta de cada um de nós. E as empresas responsáveis?? “Que que isso camarada! Foi um acidente! Estamos trabalhando pelo desenvolvimento do país…”
E o pobre do Rio Doce? Hoje está na mesma UTI, de mãos dadas com o Lago Batata, o Rio São Francisco, a Mata Atlântica, o Cerrado, com o Rio Xingu… acho que deveríamos agora chama-lo de Rio Amargo.
Rayanne,
achei importante sua carta e pena que não consegui respondê-la antes, assim aproveitaríamos o calor do momento do fato para alimentar a discussão. Por outro lado, há algo positivo nesta demora, pois assim não deixamos cair no esquecimento um fato gravíssimo como este ocorrido em Mariana. E aproveito para dizer que partilho sua opinião, principalmente no que diz respeito à gravidade do que aconteceu, que trata-se de um impacto que irá durar um bom tempo, que nossos governos não têm a questão ambiental como prioridade e que com muita frequência são os lucros que comandam o uso dos recursos naturais.
Contudo, preciso dizer que a comparação com o lago Batata não me parece muito apropriada, embora em ambos os casos ocorra a modificação da transparência da água, o assoreamento e a morte de vegetação marginal. Na minha visão, as semelhanças acabam aí e mesmo estas semelhanças ainda se diferenciam (se é que se pode dizer assim), por ex., porque rejeitos de ferro são diferentes dos de bauxita, o processo de assoreamento ocorreu com outra dinâmica e o igapó é muito distinto de matas ciliares. Bom, indo além, posso enumerar alguns outros pontos que julgo relevantes para a discussão, embora não vá detalhá-los, pois acho que não seria adequado neste momento. Os dois casos tem origens totalmente diferentes e como os responsáveis atuaram não é possível comparar. Em Mariana ainda não se sabe e no lago Batata temos visto que a empresa assumiu todas as responsabilidades e tem cumprido o que lhe pede o órgão fiscalizador (entre outras coisas e que nos toca diretamente, com monitoramento, ações de restauração e pesquisas). Nem à época mais crítica o impacto atingiu todo o lago Batata e toda a vida do lago Batata e embora não seja muito favorável a comparações antopocêntricas, acho que o lago Batata nunca esteve na UTI. E claro muito menos agora, decorridos cerca de 25 anos do impacto e quando temos uma bem sucedida intervenção para recuperação de parte da área marginal afetada e que também o próprio lago mostrou sua resiliência em áreas de recolonização natural e colonização por arroz bravo. Poderíamos aprofundar ainda mais estas considerações e dizer com toda segurança que o tempo de remissão (considerando que estejam doentes) é de difícil comparação, pois trata-se de um rio e um lago (ou seja, ambientes hidrodinamicamente diferentes) e que o lago Batata já está em tratamento há 25 anos, desde que a causa do problema foi estancada. Já para o rio Doce não se pode dizer o mesmo. E por ora, ainda gostaria de dizer, usando de antropocentrismo novamente, que estes dois ambientes não estão, de maneira nenhuma de mãos dadas. Se o rio Doce encontra-se numa UTI, o lago Batata é um paciente que talvez já esteja com alta, embora tenha que estar sob cuidados, pois certas feridas ainda não cicatrizaram. Que haverá cicatrizes, concordo com você, mas lembre-se todos as temos. Enfim, espero ter contribuído para a discussão e dizer que entendo como salutar que existam divergências, especialmente num meio como o nosso, mas que mesmo entendendo que a ciência é uma realização humana, devemos buscar a conclusão mais isenta possível, calcada em dados e fatos.