Não me tenham por bitolado nem obsessivo. E nem tão pouco vejo nisso uma missão a ser cumprida com ganas religiosas. Mas acabado (presumo eu, para a maioria) o reinado do momo, queria falar um pouco e de novo de um tema que vi muito presente nos dias de folia. A água. “Você pensa que cachaça é água, cachaça não é água não” … “ é no chuê chuê é no chuê chuá, não quero nem saber as águas vão rolar” … “Lá lá lá ô ô ô ô ô ô, mas que calor ô ô ô ô ô ô”. Bom, não viemos do Egito, mas estamos no Rio de Janeiro e foram dias de muito calor. Mas não foram apenas estas as manifestações que lembraram a importância da água. A temperatura bateu recordes e a sensação térmica foi perto dos 50 oC. Não sei onde vocês estavam na terça de manhã, mas na rua Jardim Botânico, atrás do Vagalume, o verde (o bloco mais ecológico da cidade) eu estava derretendo. E direta ou indiretamente, sorvendo garrafas e garrafas d’água ou outros líquidos com elevados conteúdos dela, a multidão procurava aplacar o calor que sentia. As pessoas, derretendo, olhavam pro céu e pediam chuva prá refrescar o calor que fazia (e a secura foi tanta que nem mesmo no bloco do Barbas, famoso pelo caminhão pipa, a água jorrou); que alegria quando no escangalha! uma generosa senhora ligou uma mangueira e respingou os rostos suados; e outros queriam água dos céus para lavar a cidade e os cortejos daquele cheirinho desagradável que acaba ficando quando a multidão passa, geralmente porque alguns foliões exagerados, talvez não tão educados, pelos cantos deixam algo mais. Já outros, sabendo que a chuva alaga, não a queriam por nada. Trabalharam o ano inteiro para chegar na avenida e arrastar a fantasia empapada? O que seria do brilho, das penas, da evolução da porta-bandeira? Chuva só na quarta-feira. E foi mais ou menos assim.
Independente de qual seja o grupo a que se pertença, também ao longo destes dias ficou claro para mim mais uma vez, como, de maneira geral, nossa preocupação com a água é apenas reativa e de extremos. Se tem de menos reclamamos, lembramos dela. Se tem demais também. Desesperamos. Mas água é tema que deve ser cotidiano, quer em práticas, quer em tomadas de decisão. Anualmente o Fórum Econômico Mundial apresenta um relatório dos principais riscos globais em termos de probabilidade e potencial de impacto para os dez anos seguintes. No relatório de 2015, os 900 peritos que participaram da pesquisa Percepção de Riscos Globais classificaram as crises de abastecimento de água como o maior risco que se anuncia ao mundo. Foi a primeira vez, desde 2007 que a economia não apareceu como o principal risco para o planeta. Já na lista dos riscos mais prováveis, o risco de eventos climáticos extremos apareceu em segundo lugar, aspecto que potencializa ainda mais a importância da água. No relatório de 2016 as crises de abastecimentos de água desceram para o terceiro lugar em termos de intensidade da ameaça, sendo que as falhas em encontrarmos mitigação e adaptação às mudanças climáticas alcançaram o topo da lista. Estas são questões que estão intimamente relacionadas e influenciam outras como a própria estabilidade social. Porém, se nos dias hoje o Fórum Econômico tem se esforçado por pautar a questão da água como relevante para o futuro da humanidade, é bom lembrar que o Fórum Social Mundial já o faz desde 2003, por entender que a água é um bem comum e direito de todos. Em um cenário de mudanças climáticas que afetarão a intensidade e os regimes de chuvas, em que a população é crescente e seus hábitos de consumos em transformação e intensificação, temas como poluição, gestão e privatização das águas necessitam estar sobre a mesa das discussões e decisões.
Repetidamente pensar na água e manter viva nossa capacidade de refletir sobre hábitos e decisões que tomamos é uma forma eficaz de construir alternativas para lidar com este problema. Não me vejo um obsessivo pelo tema, mas tão pouco acho que a solução é aumentar o volume do headphone. E não será possível encontrar uma forma única de enfrentar a escassez da água, erro tão comum em tanta coisa dita e escrita por aí afora. Geralmente é na tecnologia que cremos cegamente. Claro que precisaremos, por exemplo, da tecnologia que produzirá novos cultivares que dependam de menos água ou ainda de meios que resultem no aumento da eficiência na aplicação de nutrientes nos cultivos. Não nos enganemos. Não acho que exista uma caixa tecnológica quase mágica que abrimos e de onde salta uma solução toda vez que a água bate na … e nadar apenas já não basta. Será necessário nosso envolvimento e participação qualificada na gestão. Assim espera-se que instrumentos como os apresentados pela lei das Águas deixem de ser letra morta e sejam meio de proteção de recursos naturais e distribuição equitativa de água. Será também necessário gastar menos, poluir menos cuidando do seu lixo, separando e compostando. E ainda sermos também criativos como são os japoneses, que com seus “Mizu-Bune” são racionais no uso da água. Apesar de criativos e capazes de arranjos sociais fascinantes, não há uma solução única. E encontrar soluções múltiplas exige pensar na água mesmo quando derretemos no asfalto cantando “mamãe eu quero, mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar…”
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