Eu sei, eu sei… “Conservar” e “matar” são verbos cuja conjugação não combina em uma mesma frase. Tampouco em um título que tenta sintetizar uma ideia em prol da conservação! Mas se me cederem alguns minutos de sua atenção eu prometo explicar e, quiçá, convencê-los de alguns equívocos que vêm sendo cometidos.
A conservação pode ser voltada para conservar ecossistemas, conservar espécies ou conservar processos ecológicos. No primeiro caso não há uma espécie foco, mas sim a preocupação em que as ações de proteção de um ecossistema resultam na efetiva proteção das espécies que compõem aquele ecossistema. No segundo caso a conservação pode ser primariamente voltada para a conservação de uma (ou poucas espécies) e as ações são voltadas para sua preservação (embora por essência o ecossistema deva ser preservado, pois senão, não haveria a preservação da espécie-foco). Muitas dessas ações envolvem eleger uma espécie-alvo que pode representar um guarda-chuva* (normalmente carismática e com apelo popular) para outras espécies simpátricas (que compartilham o mesmo habitat). No terceiro caso a preocupação está na preservação de processos ecológicos, nos quais ao se perder uma parte do processo, todo o processo estaria inviabilizado. Alguns exemplos são a polinização, a dispersão e a relação parasita-hospedeiro.
A União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN; veja o site aqui) redigiu um guia com critérios que devem ser considerados para avaliar o status de uma espécie quanto às ameaças as quais estão sujeitas e seu risco de extinção. Uma das recomendações da IUCN é que, se uma espécie depende de outra espécie para todo ou parte de seu ciclo de vida, o status de conservação da espécie avaliada deve ser compatível com o da espécie hospedeira.
Estudando nuances da relação entre anfíbios anuros e vegetais da família Bromeliaceae e fazendo a laboriosa revisão bibliográfica exigida em muitos programas de pós-graduação como uma das etapas para obtenção do título pesquisei os aspectos da conservação entre estes organismos. Anfíbios são os vertebrados mais ameaçados do planeta. O Brasil é o país com maior riqueza de anfíbios, o que o torna uma referência para este grupo animal. Assim, achei por bem, verificar o estado do conhecimento sobre conservação dos anuros que utilizam bromélias bem como avaliar a compatibilidade dos status de conservação dos anuros com suas bromélias hospedeiras.
Esta avaliação que fiz foi um capítulo de minha tese de doutorado que tratou vários aspectos das relações interespecíficas entre anuros e bromélias. Realizei meu doutoramento pelo Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Evolução da Universidade do Estado do Rio de Janeiro sob orientação do Prof. Fred (que assina esse post comigo). Inclusive, aproveitamos o espaço para um #UERJResiste.
Anuros utilizam bromélias de duas formas basicamente: (i) para refúgio ou abrigo uma vez que as bromélias são locais com clima mais ameno e favorável para estes animais de pele fina e respiração cutânea ou (ii) para, além do abrigo momentâneo, reprodução com suas larvas e/ou ovos se desenvolvendo exclusivamente no interior de indivíduos da família Bromeliaceae (família botânica das bromélias) que, principalmente, formam pequenas cisternas armazenando água. O primeiro grupo é chamado de bromelícola, enquanto o segundo grupo foi batizado de bromelígena.
No trabalho avaliamos toda a área de ocorrência em que anuros e bromélias com cisternas se sobrepõem. Identificamos 99 anuros que se reproduzem exclusivamente em bromélias e listamos 74 espécies de bromélias hospedeiras. Nós verificamos que 58% dos anuros que reconhecidamente dependem de bromélias para reprodução e manutenção de suas populações, não há sequer uma única espécie de bromélia registrada como hospedeira! Este fato afronta os princípios da conservação preconizados pela IUCN! Claro que precisamos de muito mais informação uma vez que 35% dos anuros estão atualmente categorizados sob o status de dados insuficientes, ou seja, sem informação científica suficiente para saber se a espécie está ou não ameaçada. O trabalho está publicado na revista Symbiosis (acesse-o aqui).
Outro dado importante que surgiu com o trabalho foi as inconsistência entre o status de conservação das espécies dos anuros e das espécies das bromélias hospedeiras. Pelo menos quatro anuros (Phyllodytes melanomystax, Ololygon littorea, Ololygon perpusilla e Adelophryne maranguapensis) deveriam estar sob um status de conservação mais restritivo para ser coerente com o status de suas bromélias hospedeiras de forma a atender aos critérios da IUCN. Estas quatro espécies ocorrem todas na Mata Atlântica. Este Bioma além de ser considerada um hotspot para a biodiversidade (região que apresenta simultaneamente elevada diversidade biológica e sofre significativa pressão de ameaças) é o maior centro de diversidade e endemismo tanto para anuros quanto para bromélias.
Mais do que um simples estudo de caso entre anuros e bromélias, este trabalho pode ser projetado para todo o tipo de relação dependente entre espécies, sejam estas harmônicas (quando todos os envolvidos se beneficiam) ou desarmônicas (com prejuízo para pelo menos uma das espécies envolvidas).
Desde o trabalho de Picado (1913) a mais de um século atrás se sabe que as bromélias sustentam uma ampla variedade de seres além de serem capazes de ampliar a diversidade biológica de uma determinada área. Bromélias são vegetais que modificam a estrutura do ambiente pela sua própria existência. Por isso são classificadas como espécies engenheiras (no caso autogênicas). A complexidade de sua estrutura, com diferentes microhabitats e com armazenamento de água livre como cisternas naturais, faz com que muitos organismos (animais, vegetais, protozoários, bactérias e fungos) utilizem a bromélia como um fator importante em sua história de vida.
Essas “cisternas naturais” também apresentam endemismos, ou seja, abriga espécies exclusivas destes sistemas, que apenas ocorrem dentro de bromélias. Seriam então as bromélias espécies guarda-chuva? Até poderiam, mas infelizmente a resposta por enquanto é não!
As bromélias por muito tempo (e ainda hoje!) são identificadas como locais propícios para o desenvolvimento de larvas de insetos vetores de doenças como dengue, zika e chikungunya. Porém isto não é verdade!!! Estes mosquitos (como exemplo o Aedes aegypti) não são encontrados vivendo em bromélias naturalmente. Até em bromélias usadas como paisagismo estes mosquitos não se apresentam em nível de praga. As bromélias têm sido usadas como bode-expiatório principalmente pelo poder público que não age com efetividade nos reais criadouros destes insetos vetores. BROMÉLIAS SÃO MUITO IMPORTANTES PARA A CONSERVAÇÃO E NÃO SÃO CRIADOUROS DE MOSQUITOS VETORES!!!
Parasitas também são espécies que podem sofrer do mesmo modo que os anuros bromelígenas. Assim como as bromélias hospedam os anuros, os hospedeiros dos parasitas que estiverem de alguma forma ameaçados, colocam em cheque a sobrevivência de ambas as espécies. Pode parecer estranho “defender” os parasitas, mas lembre-se que isso é uma questão semântica! O parasitismo é um dos muitos modos de vida mais comuns na natureza e as espécies que se utilizam dele, em todo ou parte de seu ciclo de vida, também tem o direito de serem conservadas. Vale lembrar também que o parasitismo é um dos principais fatores bióticos que dirigem comunidades e controlam populações. Mais sobre a conservação de parasitas aqui.
Voltemos ao título e, levando em consideração que as cisternas de bromélias sustentam e abrigam uma infinidade de organismos, deixo aqui minha proposta de alteração do ditado popular “Matar dois coelhos com uma cajadada só” por “Conservar muitas espécies com uma caixa d’água só”. No caso, a caixa d’água seriam as cisternas das bromélias.
Fica a dica!
* alguns pesquisadores diferenciam o conceito de “espécie guarda-chuva” de “espécie bandeira”. No texto eu trato como sinônimos pelo fato de ambas terem efeitos positivos indiretos na conservação de outras espécies. A diferença consistiria em que a espécies bandeira necessariamente seria uma espécie carismática como um ícone, enquanto a espécie guarda chuva necessitaria de uma grande área conservada para sobreviver onde estariam distribuídas diversas outras espécies.