A decomposição é um importante processo ecossistêmico que permite aos nutrientes, uma vez incorporados a matéria orgânica, serem a redisponibilizados e reutilizados nas cadeias tróficas. Esse processo geralmente se dá no solo/sedimento dos ecossistemas terrestres e aquáticos, que são sítios de deposição da matéria orgânica, e pode ser influenciado por fatores bióticos e abióticos.
Cientistas que visam explorar questões a respeito da decomposição nesses ambientes, fazem uso de um vasto arcabouço metodológico e, dentre eles, um dos métodos mais consolidados para esse fim é o uso de litterbags ou sacos de detritos. Estes, geralmente consistem em sacos quadrados ou retangulares feitos com tecido de diferentes tamanhos de malha. Os detritos (geralmente folhas) são colocadas dentro desses “sacos” e deixados sobre o solo ou sedimento desses ambientes por determinado tempo.
Diversas perguntas podem ser feitas utilizando essa metodologia, como por exemplo conhecer a taxa de decomposição de diferentes componentes de espécies que ocupam o sistema que está sendo estudado (ou, no caso de riachos e lagoas, espécies que ocupam o seu entorno), testar o efeito da diversidade de plantas e/ou micro (ex.: bactérias/fungos) e macroorganismos (ex.: insetos aquáticos, decápodas, etc) no processo de decomposição, comparar diferentes sistemas utilizando as mesmas malhas e folhas, avaliar a taxa de decomposição para identificar sistemas impactados, descobrir quem está contribuindo para uma maior taxa de decomposição, etc.
Todavia, diversos trabalhos têm criticado essa metodologia principalmente quando a pergunta a ser testada é o papel de diferentes organismos no processo de decomposição foliar. Nesses experimentos é comum o uso de sacos com diferentes tamanhos de malha afim de “selecionar” quais organismos podem ou não entrar nos saquinhos, sendo assim, sacos com malha fina não permitem a entrada de animais (isolando o efeito de fungos e bactérias), sacos com malha intermediária restringem a entrada apenas a pequenos insetos aquáticos e sacos com malha mais grossa permitem a entrada tanto de pequenos insetos aquáticos quanto de animais maiores como camarões e caranguejos.
Porém, não se pode ignorar que a incubação de detritos em saquinhos não é algo que reproduz perfeitamente o processo natural de decomposição desse material na natureza, de modo que algumas das suas propriedades podem afetar as características dos detritos além daquelas que se pretendiam e, consequentemente, mudar totalmente o resultado final do experimento. O primeiro problema do uso dessa metodologia é a alteração do fluxo de água dentro dos sacos em ambientes aquáticos. Sabemos que, em condições naturais, quanto maior o fluxo, maior o efeito de abrasão da água nos detritos, e consequentemente, maior a perda de material. Sendo assim, se nós usarmos sacos com diferentes malhas, devemos assumir que o efeito da abrasão vai ser diferente entre os tratamentos e isso, por si só, já fará uma grande diferença no resultado. Outro problema é que os sacos acabam servindo de atrativo para alguns animais que naturalmente não interfeririam na taxa de decomposição, porém, uma vez que encontram um ambiente mais estável, seguro e confortável eles tendem a não sair, tornando sua densidade nos saquinhos maior do que a densidade natural encontrada naquele trecho de rio, superestimando assim a sua atuação no processo de interesse.
Ok Claudia, senta lá! E como resolver esses problemas?
Alguns pesquisadores já vêm testando outras técnicas para exclusão de fauna em experimentos de decomposição em ambientes aquáticos, como por exemplo, o uso de cercas elétricas. Essas cercas são geralmente retangulares feitas com tubos de PVC no qual são colocados fios de cobre por onde vai passar a corrente elétrica, impedindo que os animais acessem os detritos que estariam dispostos no interior do raio de ação da cerca. Essa metodologia foi desenvolvida inicialmente para testar o efeito da fauna no acúmulo de sedimento, mas já está sendo utilizada também para testar o efeito de macroconsumidores sobre a comunidade de macroinvertebrados, no processamento de material foliar alóctone e no perifíton.
Durante o meu mestrado eu testei o efeito da fauna na taxa de processamento foliar utilizando uma adaptação dessa metodologia, visando testar dois níveis de intensidade de choque para separar o acesso de diferentes animais. Como a resistência ao choque é é inversamente proporcional ao tamanho dos bichos, campos elétricos fracos conseguem repelir animais de tamanho maior (no caso, camarões), ao passo que campos elétricos mais fortes conseguem repelir tanto estes quanto os de tamanho menor (no caso, insetos aquáticos).
Além disso, eu comparei essa metodologia à dos saquinhos comumente utilizados, todavia eu padronizei a questão do fluxo de água no seu interior confeccionando-os em forma de cone com uma malha bem fina, evitando também a entrada de animais pela lateral, e apenas a “boca” desse cone tinha malha diferente entre os 3 tratamentos para equipara-los aos tratamentos das cercas. Assim, ao colocarmos os sacos com a boca à jusante, o fluxo de água entraria em todos os sacos pela mesma malha e os animais entrariam contra o fluxo, pela “boca” do cone.
Resultado? Os experimentos tiveram resultados completamente diferentes!
No trecho de rio avaliado, foram registrados diversos insetos aquáticos (efemerópteras, tricópteras, plecópteras, quironomídeos, etc) e duas espécies de camarão, sendo um pequeno, de hábito diurno e herbívoro que, segundo análise isotópica utiliza algas como sua principal fonte alimentar; e o outro maior, de hábito noturno e onívoro que, segundo análises isotópicas, é preferencialmente carnívoro.
No experimento com as cercas elétricas, com as folhas “livres” na água, pudemos observar um efeito indireto no processamento foliar por meio de cascata trófica provocada por um macroconsumidor (camarão onívoro) sobre a comunidade de insetos aquáticos, principalmente efemerópteros (efeito indireto). Na presença desses camarões os insetos eram inibidos, diminuindo sua atividade, o que não acontecia quando os camarões eram excluídos sob efeito do choque. Nesse tratamento (sem camarões) os insetos tiveram sua atividade ininterrupta, tornando o processamento foliar maior do que no tratamento com camarões.
Por outro lado, no experimento utilizando os saquinhos, nós observamos uma densidade muito maior do camarão diurno dentro dos sacos e ausência do camarão noturno, além de uma gama deles e de alguns insetos por fora dos saquinhos, como se estivessem de fato sendo atraídos por aquele material. Como resultado deste experimento, os saquinhos onde os camarões podiam entrar apresentou uma maior taxa de processamento foliar do que os saquinhos onde apenas insetos aquáticos estavam. Esse resultado se deve, provavelmente, a um efeito direto no processamento foliar por bioturbação (e não consumo) provocado pelo camarão herbívoro que, além de estar em maior quantidade dentro dos sacos e ocupando maior espaço, tem o hábito de revirar folhas em busca de algas perifíticas associadas ao material incubado, como observado em diversos outros trabalhos nessa mesma área de estudo.
Tendo em vista esse resultado completamente distinto entre as metodologias em relação à atuação da fauna, e uma menor taxa de decomposição em todos os tratamentos utilizando os saquinhos, nós acreditamos que o experimento de cerca elétrica nos deu um resultado mais próximo à realidade daquele ambiente.
Mas nem tudo são flores…
É claro que usar cercas elétricas requer um aparato de materiais como painel solar, baterias, eletrificadores, fios, cabos… e muitas mãos e pernas pra carregar toda essa parafernalha! Por isso, na prática é complicado pensar em replicar esse tipo de experimento, por exemplo, em análises de impacto ambiental, onde temos que testar em diferentes riachos, muitas vezes distantes e com difícil acesso. Todavia, reconhecer que uma metodologia, apesar de amplamente utilizada, nos mostra distorções da realidade tão fortes pode ser o início para repensarmos formas de utilização ou adaptação para que evitemos estes problemas.
Referências
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