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Na floresta? Não seria no lago ou algo parecido? Para alguns pode ser estranho. Para outros com certeza é estranho. Muitos sequer sabem o que é um limnólogo, esse pesquisador das águas continentais. Esse ser ávido por conhecer a estrutura e o funcionamento, a vida, presente nos rios, nos lagos, nos brejos, no úmido, enfim, onde a água é feição dominante. Desta forma não poderiam imaginá-lo em lugar algum. Já os que sabem o que faz um limnólogo, dificilmente o veriam na floresta. Isso porque de longa data temos na ciência a prática de separar, separar e separar de novo. Assim, terra é terra. Água é água. E o lugar do limnólogo é na água. Ou ao menos deveria ser. O que faria então um limnólogo na floresta? Talvez esteja perdido, talvez passeando, diria um mais afoito. Nem perdido, nem passeando é o que quero narrar. Embora ambas as experiências possam ser enriquecedoras, existem outros motivos que podem levá-lo a entrar na floresta, como buscar remotos cursos d’água (igarapés) por entre pirambeiras para coletar amostras. Então, se a floresta tem igarapés, tem água e também é um lugar para o limnólogo. E no Laboratório de Limnologia da UFRJ, com muita frequência os pesquisadores calçam botas e perneiras, capacetes, luvas e óculos para se embrenhar na mata, e com segurança alcançar o ponto de amostragem. É normal que sejam caminhadas longas, seguramente sempre morro abaixo para chegar ao destino. Se a singularidade e beleza do ambiente extasia, o retorno preocupa e desafia, pois é preciso vencer a gravidade, com a mochila carregada de amostras.
Limnólogos lutando contra a gravidade
Isso faz com que a nova trilha a percorrer (decisão nada trivial) seja sempre um misto de perguntas e certezas na cabeça do limnólogo na floresta. Serei capaz? Já fiz outras trilhas. Estou preparado? Vai ser muito cansativo? O novo exige empenho. Será bonito este lugar? O que verei de novidade? Gostaria de ver tanta coisa. Tem cobra? Tem caba (marimbondo)? E a onça? E se chover? E os mosquitos? E os carrapatos? A diversidade da floresta é surpreendente, incomoda e captura. A grandiosidade da floresta amedronta e desafia. Sempre impõe limites. A floresta nunca se mostra totalmente, mas tampouco se esconde. Sempre reserva surpresas.
A floresta surpreende. “Ostras” na floresta? Fruto de Aspidosperma obscurinervium, uma árvore da família das Apocynaceae
Prá mim, um limnólogo, alguém da água, mais que para qualquer outra pessoa, mostra minha pequenez, esvaziando-me a mente dos conhecimentos aquáticos; e ainda como faz para qualquer um esvazia-me a mente e também o peito dos atropelos do dia-a-dia. E ao pensar em nada, ainda que ofegante e tropeçando pela trilha, ao esvaziar-me de tudo que me satura, posso perceber um mundo que eu não via. Um mundo que outros já haviam narrado, por exemplo quando alguém disse que a floresta é mais que um amontoado de árvores ou o ribeirinho que me avisou que Deus é grande, mas o mato é maior. Assim tem acontecido pra mim, agora quando entro na floresta. É sempre diferente, é sempre deslumbrante, é sempre transformador. E também aqui me ajuda algo que o filósofo dizia e já me ajudava ao ser limnólogo: Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Eu nunca entro duas vezes numa mesma floresta, disto estou certo agora. E esta certeza não consegui sozinho. Talvez seja mais fácil compreender que o rio muda, afinal é um ecossistema dinâmico por natureza. E a floresta? Embora as árvores não se movam como andam, nadam ou voam os animais, Peter Wohlleben, em A vida secreta das árvores, mostrou-me que a distinção entre planta e animal é arbitrária e se baseia na forma como o organismo se alimenta… No fim das contas, a única diferença além dessa diz respeito ao tempo de processamento de informações e sua conversão em ações… Às vezes imagino que teríamos mais consideração pelas árvores e por outros vegetais se tivéssemos certeza de que em muitos aspectos eles são semelhantes aos animais. Ele vai além ao procurar demonstrar que as árvores da floresta são seres sociais… Desde então, caminho pela floresta como por uma avenida movimentada de uma grande cidade, por entre seres que respeito e observo, que me veem e se interessam por mim. Vazio de mim, posso encher-me do todo que me rodeia. Um limnólogo na floresta está numa jornada de busca de água, lama, organismos para seu labor e se atento e livre, numa jornada que pode transcender a rotina do cotidiano para mostrar-lhe a verdadeira razão de habitar esse planeta: irmanar-se em fraternidade universal com toda forma de vida, a cada uma respeitar, a cada uma proteger. Eu diria que um limnólogo caminhando por uma trilha na floresta deveria estar meditando.
A limnologist in the forest
In the forest? Or on the lake? For some it may be weird. For others it is certainly strange. Many don’t even know that the limnologist is a continental water researcher. He is a being eager to know the structure and the functioning, the life, present in the rivers, in the lakes, in the marshes, in the wetlands. Because they do not know him, they could not imagine him anywhere. Those who know what a limnologist does would hardly see him in the forest. This is because there is in science the conviction that to know it is necessary to divide, divide and divide again. So, earth is earth. Water is water. And the limnologist’s place is in the water. Or at least it should be. What would a limnologist do in the forest? Maybe he’s lost, maybe just walking. Neither lost nor walking is what I want to tell. While both experiences can be enriching, there are other reasons that can lead him into the forest, such as the search for remote “igarapés” through steep slopes to collect samples. So if the forest has such streams, there is water and it is also a place for the limnologist. In fact, at the Laboratory of Limnology of UFRJ, researchers often wear boots, helmets, gloves and security glasses to get into the forest, and safely reach the sampling point. It is normal that there are long walks; surely always going down the mountains to get the watercourses. If the singularity and beauty of the environment are ecstatic, the return worries and challenges, because gravity must be overcome, with the backpack loaded with heavy samples. This makes the decision to face a trail (something nothing trivial), for the limnologist, always a mixture of questions and certainties. Will I be able? I’ve done other trails. Am I ready? Will it be very tiring? The new requires commitment. Is this place beautiful? What will I see? I would like to see so much. Are there snakes? Are there bees? What about the jaguar? And if it rains? And the mosquitoes? What about ticks? The diversity of the forest is amazing; it bothers us and captures us. The grandeur of the forest is frightening and challenging. Always imposes limits. The forest never shows itself fully, but it does not hide itself either. Always reserve surprises. For me, a limnologist, someone who works with water, more than anyone, the forest shows my littleness, emptying my mind of aquatic knowledge; but also as it does for anyone, it empties my mind from the oppressions of everyday life. And when I thought of nothing, although panting and stumbling along the trail, emptying everything that saturated me, I could perceive a world that I did not see. A world that others had already narrated, for example when someone said that the forest is more than a heap of treesor the ribeirinho that warned me that God is great, but the bush is bigger. This has happened to me now, when I enter the forest. It is always different, it is always dazzling, it is always transformative. And here I remember something that the philosopher said: No one can enter the same river twice, because the waters are not the same, and the being has already changed. I never go into a forest twice, I’m sure now. But that certainty I did not reach alone. Perhaps it is easier to understand that the river changes, after all it is a dynamic ecosystem by nature. But what about the forest? Although trees do not move as animals walk, swim or fly, Peter Wohlleben in The Secret Life of Trees has shown me that the distinction between plant and animal is arbitrary and is based on the way the organism feeds… In the end, the only difference other than that relates to information processing time and its conversion into actions … Sometimes I imagine we would have more regard for trees and other vegetables if we were sure that in many ways they are similar animals. It goes further by seeking to demonstrate that the trees in the forest are social beings … Since then, I walk through the forest as if on a busy avenue of a great city, among beings I respect and observe, who see me and are interested in me. Empty of me, I can fill myself with everything that surrounds me. A limnologist in the forest is on a quest to find water, mud and organisms for his work. But if he is also attentive and free, he will be on a journey that can transcend the routine of daily life to show him the true reason to inhabit this planet: to be united in universal fraternity with every form of life, to each one respect, to each one to protect. I would say that a limnologist walking in the forest should be meditating.
Sinto-me assim entrando na floresta… Meditando..Sinto paz, mesmo no cansaço de uma pirambeira, e sinto-me pequena diante vasta imensidão.. talvez por isso eu amo tanto ser uma limnóloga no meio da floresta.. 😄.. muito bom o post!.
Oi María, obrigado. Fico feliz pelo sentimento compartilhado, somos parecidos, amamos o que fazemos!