Por Laísa Freire
Em tempos de isolamento social, nada como um texto sobre interações sociais para nos fazer refletir sobre como a nossa sociabilidade nos constitui…
E começou assim…
Éramos quatro pessoas na equipe de trabalho daquele sábado de janeiro em Carajás. Nossa atividade na trilha era demarcar o local das placas de sinalização interpretativa que estávamos construindo. Além do trabalho a ser realizado, estar na natureza nos estimula e nos convida a uma série de experiências estéticas que extrapolam a dimensão racional. Neste sentido, caracterizar de que modo o ambiente nos afetou foi um exercício interessante, pois buscou acessar o campo das emoções e afeições. Clarice e eu havíamos estado na trilha anteriormente, havíamos ido com outras pessoas da equipe do laboratório acompanhadas por um guarda patrimonial, pois ali já fora avistada uma onça. Reinaldo também havia estado lá em outra ocasião, mas para Luiza era a primeira vez. Será que um dia avistaremos a onça? O imaginário da onça é frequente nas nossas conversas sobre o caminhar nas trilhas Amazônicas.
Começamos a caminhada com nossos aparelhos de celular e GPS apostos para marcação dos pontos. Ao começar caminhada, ainda bem próximo do carro na entrada da trilha, sentimos mosquitos nos picando e resolvemos dar uns passos atrás em busca de um repelente. Clarice era a única do grupo que havia levado e nos emprestou. Após passarmos o repelente, voltamos a nos concentrar na caminhada e em marcar os pontos registrando as coordenadas que nossos instrumentos mostravam. A caminhada foi silenciosa e a cada ponto em que eu achava que poderíamos colocar uma placa de sinalização, nós parávamos e registrávamos. Em determinado momento Clarice e eu, que estávamos na frente, observamos um tronco caído no meio da trilha. Clarice fez sinal de recuo e eu parei imediatamente. Por alguns mili segundos achei que poderia ser uma cobra (talvez por alusão à última vez que viemos na trilha e eu passei por cima de uma cobra cipó), mas não era. O sinal de alerta era mesmo sobre o tronco, mas me fez perceber que estava caminhando em alerta todo o tempo. Cruzamos o tronco e a caminhada seguiu. Alguns comentários sobre como manusear os instrumentos foram feitos por mim e pelo Reinaldo. Outros comentários sobre as placas existentes foram realizados pela Clarice. Luiza ficou quieta a maior parte da caminhada. Estava imersa em seus pensamentos, mas foi observando as cores e as formas das plantas.
À medida que íamos nos aproximando do igarapé, o som das águas se fazia mais intenso e sabíamos que estávamos chegando ao final da trilha. A chegada tem suas recompensas e nos convidou a um banho na cachoeira. No momento em que chegamos no igarapé, o trabalho de marcação da trilha deu lugar a experiências de tocar e sentir água e tudo o que ela trazia. Tiramos as perneiras, as calças compridas, as camisas de campo e expusemos nossos corpos para um delicioso mergulho nas águas da cachoeira. A temperatura da água estava muito agradável o que fez com que eu entrasse de primeira. Clarice demorou um pouco mais pois, assim que ela colocou os pés, os peixes nadaram em direção a ela e começaram a mordiscar. Isso a afetou negativamente fazendo com que ela adiasse seu mergulho. Os peixes não me afetaram, nem me buscaram para mordiscar. Nem a mim nem à Luiza. Ela e eu nadamos com eles e fomos explorando as áreas de queda d’água e “pocinhas” para estar.
Figura 1: Luiza e eu durante imersão estética na cachoeira de Águas Claras
O barulho da cachoeira afetou Luiza de forma positiva, fazendo-a sentir-se relaxada ao estar presente integralmente vivendo os momentos do banho no igarapé. Olhei ao redor e vi que Reinaldo não estava ali, pensei que provavelmente havia se afastado subindo contra corrente em busca de outra trilha (trilha vai quem quer). Ele não havia ainda entrado na água… Já que Clarice estava fora d’água, Luiza e eu pedimos que ela registrasse o momento tirando uma foto nossa. Ela prontamente o fez. Caminhou até o local onde havíamos deixado nossas roupas, molhou o rosto e o cabelo na água, pegou seu celular, caminhou até nós e tirou fotos. Se incluiu nas fotos fazendo selfies. As conversas entre nós três versaram sobre o substrato em que pisávamos, partes com areia, outras de pedra e ainda outras com foliço, que evitamos pisar. Também Luiza e eu falamos brevemente sobre os organismos e suas características para viver ali. Quem rompeu com a naturalidade do estar ali foi o Reinaldo que voltou de sua caminhada falando que havia encontrado uma cachoeira maior, falou ironicamente que estávamos nadando em uma “pocinha de nada” e nos instigou a caminhar até lá. Fez a objeção que teríamos que ir calçadas. Prontamente saímos da água e nos interessamos em explorar um lugar novo. Voltamos ao local das roupas, colocamos as meias e os calçados com os pés molhados, avaliamos a estética dos nossos corpos (roupa de banho com botas e meia) e pendemos pela segurança. A nova caminhada nas pedras da cachoeira e em sua margem nos trouxe desafios, como o equilíbrio e apoio nas cordas e as respostas de cada um. Reinaldo era o guia e traçava o caminho. Clarice começou a ir e, na hora de cruzar o riacho sobre as pedras, travou. Fui eu fazer a travessia. Busquei pisar nos mesmos locais em que Reinaldo havia pisado. Clarice foi em seguida com a Luiza. Luiza fez a caminhada preocupada com o equilíbrio nas pedras e com o fato de estar com o celular que a qualquer deslize corria o risco de cair na água. As cordas instaladas cruzando as pedras no meio do corpo d’água ajudavam no deslocamento pois iam sugerindo um caminho. A posição das cordas fazia um zigue-zaque digno de ser interpretado por um observador atento e com vontade de chegar na queda d’água. Durante o percurso, nos deparamos com um grupo de borboletas amarelas. Eram muitas e voavam todas juntas na margem do riacho. Cruzamos seu caminho passando por elas. Adorei essa experiência, mas as espantei momentaneamente. Luiza registrou com fotos quando pulei no caminho das borboletas. Nossa caminhada alternava entre momentos prazerosos de risadas e momentos de equilíbrio e atenção nas pedras. Cada um cruzou as cordas no seu tempo e todos chegaram para curtir a queda d’água, para mergulhar no “poção” e deixar-se levar pelas águas. Reinaldo que até então não havia entrado na água, não resistiu, deu um mergulho, nadou até bem próximo a queda d’água e aproveitou a velocidade das águas para massagear sua coluna que doía. Experimentou uma sensação revigorante que só a água traz. Sentiu o lugar, a textura das pedras – super lisas-, moldadas pelas águas. Clarice nadou no poço e interagiu com as águas. O visual da cachoeira a conquistou.
Figura 2: Cachoeira de Águas Claras, Pará
Seu sorriso no rosto me mostrava felicidade. Eu também estava contente, olhei para cima e para água. Que beleza contemplar a paisagem. Que gostoso sentir a água que não gelava sobre meus ossos. Luiza estava solta curtindo o mergulho, seu celular estava são e salvo sobre uma das pedras na margem e suas preocupações haviam acabado. A trilha nos afetou de modo singular, a cada um de um jeito. Já não importava voltar molhado, não importava a bota na água, pois as experiências positivas fizeram o dia valer a pena. Na caminhada de regresso conferimos os pontos marcados, entramos no carro e pegamos a estrada de volta. Não vimos a onça, mas vimos um bando de macacos e sentimos muitas coisas que estarão para sempre nas nossas lembranças nos constituindo permanentemente como sujeitos ecológicos.
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A experiência estética no ambiente natural tem sido estudada a partir do seu potencial de promover uma conexão entre ser humano e natureza. Desde 2015 venho me aproximando dos estudos pós críticos da Educação Ambiental e tenho explorado a abordagem da ética˜estética˜política (Payne et al, 2018) da Educação Ambiental em diálogo com a ecopedagogia (Payne, 2015; Payne, 2018). A partir dessa narrativa, poderemos analisar como estar no ambiente nos afetou e como podemos promover experiências positivas no contato com a natureza. Observei na caminhada que sensações proporcionadas pelos cheiros, sons, texturas da mata foram mencionadas como experiências vividas ao longo da trilha. Valores e posicionamentos como segurança, preservação e registro digital também estiveram presentes na experiência. Parte do projeto de Educação Ambiental em Carajás tem se dedicado a entender esses movimentos construindo ferramentas de observação, registro e análise contribuindo para o desenvolvimento teórico e metodológico da Pesquisa em Educação Ambiental.
Figura 3: A. Igarapé no Parque Nacional dos Campos Ferruginosos, B. Trilha de Águas Claras, C. Equipe no campo que viveu a experiência na Trilha de Águas Claras
Referências biblográficas:
Payne, P. (2015). Slow ecopedagogy and critical curriculum action. Australian Journal
of Environmental Education, 31(2), 1–29. Retrieved from journal URL.
Payne, P., Rodrigues, C., Carvalho, I., Freire, L. M., Aguayo, C. & Iared, V. G. (2018).
Affectivity in Environmental Education Research. Pesquisa em Educação
Ambiental, 13 (Especial), 93-114.
Payne, P. (2018). The framing of ecopedagogy as/in scapes: Methodology of the issue,
The Journal of Environmental Education, 49(2), 71-87. Retrieved from journal
URL.
Muito boa narrativa! É interessante observar como essas experiências estéticas no meio natural podem suscitar emoções, sensações, pensamentos e um novo modo de se relacionar consigo mesmo e com o ambiente ao redor. Alguns autores do campo da Educação Ambiental (CARVALHO, 2012; IARED e OLIVEIRA, 2017; MARIN, 2006; MARIN e OLIVEIRA, 2005; MARIN e KASPER, 2009; PAYNE et al., 2018, SILVEIRA, 2009) entendem que essas experiências estéticas na natureza podem contribuir para a ressignificação da relação da sociedade com o ambiente, a partir da sensibilização, da criação de novas subjetividades e percepções. É importante pensar também que cada sujeito é afetado de formas diferentes e cria significados diferentes sobre as experiências vividas, como é abordado na narrativa acima.
Excelente texto, principalmente para o momento que estamos vivendo.
Excelente texto!!!
Experiências estéticas na qual a linguagem é incapaz de conceituar, mas a arte da apreciação “marca” como meio de conhecimento,
Interessante ler este texto durante o isolamento social por conta do COVID-19. Quando estamos em nossas casas, isolados do mundo concreto que por anos passou a ser nossa rotina, ir as ruas, caminhar até o trabalho, entrar em um transporte publico, fazer passeios com a família e amigos, ler textos como esse e lembrar o quanto a vida é rica, a natureza deslumbrante e o contato com as pessoas algo singular. A estética trás essa característica de recordar, ter experiências, de sensibilizar e de permitir a subjetividade. Somos sujeitos independente de onde estamos, o interessante dessa questão é entender que cada um pode ter impressões diferentes de uma mesma vivencia e o quão extraordinário é isso.
Parabéns pelo texto Laísa, seu relato trouxe muitas recordações.