Dia 03 de setembro é o dia dedicado àquele profissional que está acostumado a ouvir “Que planta é essa?”, “Fui picado por esse inseto, eu vou morrer?”, “Que bicho é esse?” ou “Você abraça árvore na faculdade?”. Hoje é comemorado o dia do biólogo.
Não pretendo fazer deste texto uma síntese sobre o que significa ser bióloga para mim, até porque minha trajetória dentro da biologia ainda é bem curta, nem reforçar a importância da regulamentação da nossa profissão marcada por esta data. Na verdade, pretendo dizer quando o dia do biólogo passou a ter um significado muito mais forte na minha vida, e não foi quando eu entrei para a graduação em 2017, mas no ano seguinte, em 2018, infelizmente associado a um acontecimento que deixou uma ferida aberta em muitas pessoas até hoje.
No dia 02 de setembro de 2018 acontecia o incêndio no Museu Nacional (MN). Eu lembro da cena como se estivesse acontecendo agora: os grupos com inúmeras mensagens, vídeos, fotos do Museu Nacional em chamas, todos os noticiários falando sobre isso e eu sentada no meu sofá, impotente, chorando, incrédula. Era estranho pensar que um lugar que fez parte da minha infância – sempre que ia na Quinta da Boa Vista era uma parada obrigatória – estava sumindo e não tinha nada que eu podia fazer para mudar isso.
O dia do biólogo começava com cinzas. Era de manhã bem cedo e eu estava dentro de um ônibus, com os olhos inchados por passar a noite em claro chorando, indo em direção a Quinta da Boa Vista. Eu queria me despedir do Museu Nacional. Quando cheguei e vi de fato o que tinha sobrado do Museu, lembrei da Luiza pequenininha vendo aqueles animais e exposições completamente maravilhada, como se fossem coisa de outro mundo, pensando que todos deveriam ter a oportunidade de ver aquilo, lembrei da importância daquele Museu na construção do meu desejo em ser cientista, lembrei de todas as pessoas que não poderiam ter o MN como memória viva da infância. Ao mesmo tempo, percebi que em pouco tempo, infelizmente, o Museu Nacional seria esquecido e reduzido a mais um patrimônio que pegou fogo.
Um Museu que representa muito mais do que isso, que é a mais antiga instituição científica do país e um dos maiores museus de História Natural e de Antropologia das Américas. Um prédio tombado pelo Patrimônio Histórico em 1892 e que foi lar da Família Real de 1808 a 1821. Que mais do que um lugar de visitação ou pesquisa, era o lar da nossa história e da nossa ciência, era o lar de muitos dos nossos amigos que dedicaram anos da sua vida em pesquisas que sumiram na mesma velocidade que as chamas se espalharam, era o lar de muitos sonhos. Com o incêndio, tivemos mais uma vez o reforço do descaso com a ciência brasileira escancarado. Quem não se lembra das imagens de diversas pessoas que viviam pelo MN sem rumo? Ou a imagem de diversos pesquisadores se arriscando e entrando no prédio em chamas para tentar salvar suas pesquisas, equipamentos, história? Não perdíamos só uma estrutura física ou coleções biológicas, perdíamos conhecimento, cultura, educação, história e ciência.
Mesmo diante da sua grande importância história, social e cultural – abrigava cerca de 20 milhões de peças em seus acervos– o MN não arrecadou 2.6 bilhões de reais em poucas horas como em Notre-dame, ele não começou a ser reconstruído um ano depois. Hoje, dois anos após o incêndio, 20 milhões de reais foram doados pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) e a previsão é que a reforma se inicie apenas em 2021, pois a falta de verba ainda dificulta que a mesma aconteça. Ainda será necessário arrecadar mais 70 milhões de reais para garantir que ele possa retornar ao público, de forma integral, em 2025. Alexandre Kellner, diretor da instituição declara que “É imperativo que o Museu Nacional volte a ser oferecido para a sociedade. Temos a oportunidade de reconstruir um museu de História Natural e Antropologia que sirva de modelo para toda a América Latina. Se perdermos essa chance, teremos todos nossa parcela de culpa. A cultura aproxima povos, e é o que a gente mais precisa vendo a imagem do país no exterior.”
Uma equipe do Museu vem trabalhando no resgate do acervo atingido pelo incêndio, garimpando peças e fragmentos de todas as coleções. Mesmo com a interrupção causada pela pandemia, na última terça (01/09), 9 peças da coleção de Arqueologia da Imperatriz Teresa Cristina foram resgatadas durante as escavações. Ainda no início do trabalho foi resgatado o crânio de Luzia, a primeira habitante das Américas e um dos símbolos da Instituição, demonstrando que a história continua viva e o Museu Nacional ainda resiste mesmo que sem Ministério da Cultura e com todo o sucateamento da ciência brasileira. Segundo a antropóloga Aparecida Villaça “É uma espécie de pós-luto que precisa ir saindo aos poucos. O museu no qual eu me tornei profissional e cresci não vai existir mais. Porém, como instituição, está totalmente vigoroso”
Por mais doloroso que tenha sido, naquele dia em 2018 o MN não só perdeu, ele ganhou carinho, respeito, atenção mesmo que muitas pessoas não entendam “Por que se despedir de um prédio como se fosse um parente?”, muitos me perguntaram. Porque o MN era isso, ele era um parente que mesmo distante para alguns de nós- que não o viam desde as brincadeiras de infância- ainda é presente na nossa essência. No fim daquele dia eu descobri que eu não estava velando o MN nem me despedindo dele. Eu estava unindo forças com muitas pessoas que estavam ali para algo bem maior, para lutar pela ciência e pra mostrar que o MN não ia morrer. Profissionais que resistem todos os dias como o MN resistiu, mesmo destruído, mesmo em chamas, mesmo em cinzas ele se manteve de pé.
Sabe aquelas crianças que como eu tinham e têm o MN como referência? Elas cresceram e hoje são biólogos, geólogos, astrônomos, geógrafos, oceanógrafos, paleontólogos, historiadores, arquivistas, museólogos ou qualquer coisa que elas sonharam ser. Hoje elas são cientistas, elas resistem como o MN e lutam por ele. É importante que nesse dia – que é o dia do biólogo, mas também é o dia de lembrar do MN- nós tenhamos como objetivo devolver ao mesmo o que ele nos deu; o amor pela ciência, o respeito pelos cientistas, a luta pela pesquisa de qualidade no nosso país. É nosso papel mostrar isso para as pessoas, para que a população não ande na rua como se a nossa ciência pegar fogo fosse apenas uma notícia de jornal.
A partir de então, meu dia do biólogo é um dia repleto de luta, de protesto, de grito, de tentar fazer com que nossa voz seja escutada. Infelizmente, hoje, dois anos depois seguimos sem Museu Nacional, mas ganhamos um símbolo de resistência. Ganhamos um símbolo de que nossa luta não deve começar quando o pior acontece, mas tem que vir antes e sempre. Ganhamos uma memória naquele dia que não deve nem pode se restringir ao incêndio porque o Museu Nacional é muito mais, ele é força e vida. E eu, particularmente, ganhei um sentido pro dia do biólogo e não foi o fogo, mas o poder e a voz do coletivo diante do descaso com a ciência brasileira porque não tem memória mais linda ou forte do que todos nós na Cinelândia lutando em nome do Museu Nacional para representar o dia do biólogo.
Feliz dia do Biólogo para todos os biólogos e acima de tudo Feliz dia de luta para todos que vivem de ciência no Brasil.
Com carinho,
Equipe do Blog (Luiza Costa, Ana Luiza Lima, Letícia Azevedo e Raquel Mattos)
Referências:
História do Museu Nacional
https://casavogue.globo.com/LazerCultura/Arte/noticia/2020/09/como-esta-o-museu-nacional-dois-anos-apos-o-incendio-que-o-destruiu.html
https://www.dw.com/pt-br/aos-poucos-museu-nacional-renasce-das-cinzas/a-54790202
https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2019/04/incendio-em-notre-dame-enxurrada-de-doacoes-para-reconstruir-catedral-ja-ultrapassa-r-2-bilhoes.html
https://exame.com/brasil/tristeza-e-descrenca-entre-quem-acompanha-incendio-no-museu/
https://pleno.news/brasil/unesco-oferece-ajuda-para-reconstruir-museu-nacional.html
https://veja.abril.com.br/brasil/funcionarios-invadem-museu-para-tentar-salvar-parte-do-acervo/
https://www.bahianoticias.com.br/noticia/226255-fotos-mostram-desespero-de-funcionarios-na-tentativa-de-salvar-acervo-do-museu-nacional.html
Que texto lindo! Coerente, vivo, forte, correto e engajado. Muito bacana mesmo. São muitas as dificuldades para a Cultura, a Ciência e a Educação no Brasil hoje. Pra enfrentá-las será preciso toda esta energia, toda esta agudeza no olhar e toda esta paixão no coração. Parabéns Luiza. Parabéns Equipe do Blog.