O Laboratório de Limnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro abriu suas portas para mim em novembro de 1997, praticamente um calouro do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da mesma instituição. Sob a orientação do Prof. Francisco de Assis Esteves, Prof. Titular da UFRJ e fundador do Lab. de Limnologia. Em 1998 tive a possibilidade de iniciar meus estudos em ecossistemas aquáticos continentais nas lagoas costeiras da região norte fluminense (Foto 1). A lagoa Jurubatiba (Macaé, RJ) foi meu primeiro laboratório natural. Conheci as características das águas encravadas no vasto areal da Restinga e realizei uma iniciação científica com ecologia de plantas aquáticas, em especial, a Eleocharis interstincta (Vahl) Roem. & Schult. (Foto 2).
Foto 1: Sob orientação do Prof. Dr. Francisco de Assis Esteves, o então estagiário Marcos Paulo Figueiredo Barros, empurra a embarcação na lagoa Imboassica, Macaé – RJ, durante o monitoramento limnológico no final da década de 1990. Acervo Laboratório de Limnologia
Foto 2: Estande de Eleocharis interstincta as margens da lagoa Jurubatiba (Macaé, RJ), localizada nos limites do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba.
Mas o destino me guiou de E. interstincta para Heleobia australis (Foto 3), um gastrópoda que vive sobre o sedimento e adora rastejar nos tecidos vegetais para se alimentar. Por sua vez, o gastrópoda me apresentou a seu amigo Campsurus melanocephalus (Pereira & Da-Silva 1991), um invertebrado bentônico muito bagunceiro, que adora cavar túneis no sedimento (Foto 3). O mesmo, me convenceu de medir suas “travessuras” no sedimento e as consequências da construção de seus belos túneis em forma de “U” para a coluna d’água. Estes túneis são fundamentais para nutrir as águas do fundo dos lagos e lagoas. Uma bioengenharia eficiente, que promove a disponibilização de nutrientes importantes, do sedimento para a coluna d’água, além de reduzir a concentração de metano no sedimento evitando a formação de bolhas deste gás, diminuindo a possibilidade de emissões para a atmosfera. Este processo é chamado de bioturbação ou biorrevolvimento (Figura 1).
Foto 3: H. australis (em cima) e C. melanocephalus (em baixo) coletados na lagoa Imboassica.
Figura 1: Representação esquemática do túnel formado por espécies de Campsurus (Por Prof. Dr. João José Fonseca Leal). A movimentação do indivíduo construindo o túnel, bem como pela movimentação das projeções branquiais, criam um fluxo de água e nutrientes permitindo o fluxo destes entre o sedimento e a água.
Curiosamente, conheci Campsurus notatus no Lago Batata (Needham & Murphy 1924). Esta espécie me fez notar que um lago amazônico impactado por rejeito da lavagem de bauxita, matéria prima para produção de alumínio, precisava de ajuda (Foto 5). Ele me ensinou que o Lago Batata poderia ser a casa dele e de outros seres vivos mas que ainda sim precisava de uma recuperação. O impacto gerou problemas na saúde do lago, mas ele ainda tinha jeito. Então, parti para mais uma linha de trabalho que sigo e desejo sempre contribuir. A pesquisa para recuperar ecossistemas aquáticos impactados, seja por rejeito de mineração ou por eutrofização. Portanto, o lago Batata, um lago amazônico as margens do Rio Trombetas (Oriximiná, PA) (Foto 5), e a lagoa Imboassica (lagoa costeira que separa os municípios de Macaé e Rio das Ostras (RJ) (Foto 6) são os meus principais templos de estudo, atualmente.
Foto 5: Imagem aérea de parte do Lago Batata. Acima, em coloração laranja avermelhado, a área assoreada pela presença do rejeito. Acervo Mineração Rio do Norte.
Foto 6: Imagem aérea da lagoa Imboassica. Acima uma foto da região próxima ao mar (Fonte: Rodrigo Weber Felix) e abaixo um registro do corpo principal da lagoa. Fonte: Cláudia Barreto.
Apesar de ter me tornado um admirador da ecologia de invertebrados bentônicos, especialmente o seu papel sobre os fluxos de nutrientes na interface sedimento e água, e um estudioso sobre emissões de gases de efeito estufa em ecossistemas aquáticos, meu encantamento maior se tornou realizar pesquisas acerca de soluções para recuperar ecossistemas impactados. Apesar de ter trabalhado em alguns ecossistemas impactados, só após 5 anos de ter iniciado a carreira científica (como estudante de biologia e estagiário do Lab. de Limnologia) pude efetivamente pesquisar e buscar formas viáveis de recuperar ambientes utilizando elementos naturais presentes nos ecossistemas aquáticos.
O Lago Batata sofreu uma importante deposição de rejeito oriundo da lavagem da bauxita. O rejeito composto por argila, água, alguns elementos químicos como Ferro e Alumínio, baixa quantidade de matéria orgânica e baixas concentrações de fosfato e nitrogênio, é o substrato disponível em cerca de 30% da área total do lago (Fotos 5 e 7). Realizar plantios de mudas de espécies adaptadas a áreas inundáveis da Amazônia (regionalmente chamadas de Igapó) foi umas das soluções para iniciar o processo de recuperação das áreas impactadas deste ecossistema, a partir de 1993 (Foto 8).
Foto 7: Rejeito depositado nas margens do lago Batata. Acervo Laboratório de Limnologia da UFRJ.
Foto 8: Plantio de mudas de espécimes de floresta inundável (igapó) na área impactada do lago Batata em 2001. Acervo Lab. de Limnologia da UFRJ.
Umas das pesquisas importantes que eu pude colaborar mostrou que a adição de matéria orgânica morta (folhas mortas e galhos) sobre o rejeito promove um melhor desenvolvimento de espécies de igapó. Este resultado culminou em uma ação em larga escala para a introdução de matéria orgânica morta em diferentes áreas impactadas durantes os anos seguintes. As atividades de plantio e adição de material orgânico vem sendo coordenadas pelo Dr. Reinaldo Luiz Bozelli, Professor Titular do Depto de Ecologia da UFRJ (Foto 9).
Foto 9: Aspecto geral da área impactada onde foi realizado o experimento sobre a resposta da adição de matéria orgânica sobre o desenvolvimento de mudas plantadas e germinação de espécies de igapó em 2001. Aplicação de liteira em larga escala na área impactada do lago Batata em 2007. Acervo laboratório de limnologia.
Outra intervenção importante na área impactada do lago Batata é o plantio de uma espécie chamada Oryza glumaepatula, arroz selvagem. Minha proposta inicialmente foi estabelecer tapetes de arroz em uma biomanta e, depois de estabelecidos, seriam levados para o lago Batata, de maneira semelhante a tapetes de grama. No entanto, esta iniciativa não se provou eficaz. Mesmo assim, a proposta serviu como exemplo para pensar em novas estratégias de recuperação ambiental. O tema foi discutido e apresentado em uma feira de ciências na escola em Porto Trombetas, um distrito de Oriximiná, onde está instalado o porto para o escoamento da bauxita. Um grupo de estudantes escolheu o Lago Batata como tema, visando mostrar o impacto, os indicadores de recuperação e as estratégias testadas e utilizadas para a sua recuperação. Os estudantes de ensino médio puderam promover a divulgação científica, sob minha orientação, sobre o lago Batata a toda a comunidade presente no evento ocorrido no dia 26 de agosto de 2017.
Foto 10: Arroz jovem, recém germinado na bionarca, mais à esquerda. As fotos à direita mostram estudantes do ensino médio apresentando informações sobre a recuperação do lago Batata para a comunidade local.
Daí idealizei a realização de plantio direto de mudas de arroz no rejeito (Foto 11). Esta foi uma das soluções pensadas em áreas impactadas onde a vegetação arbórea de igapó não se estabelece devido a elevada umidade e ao fato dessas áreas serem muito encharcadas e passarem pouco tempo expostas.
Foto 11: Mudas produzidas no viveiro de mudas da mineiração Rio Norte. Foram plantadas na área impactada em janeiro de 2023. Os indivíduos se desenvolveram durante a inundação da área (abril 2023) e inicia-se o processo de senescência e tombamento na água (junho 2023). Acervo laboratório de Limnologia
O estabelecimento de populações de O. glumaepatula na área citada poderá promover a recuperação ecológica do substrato devido a deposição de matéria orgânica sobre o rejeito após a sua morte (Foto 12), que ocorre no período em que é observado o maior nível d’água do lago. Na seca seguinte, após o substrato ficar exposto novamente nas áreas marginais do lago, o processo de germinação e desenvolvimento vegetal recomeça. Isso ocorre no período de menor nível d’água, que expõe as margens dos rios e lagos amazônicos que estão sujeitos a pulsos de inundação. Os estudos iniciais indicam ótimo potencial desta metodologia de recuperar áreas degradas alagadas. Esperamos que a área impactada, onde é realizado o plantio de arroz selvagem, atinja uma ocupação de aproximadamente 50% da área total.
Foto 12: Depósito de matéria orgânica oriundo do arroz plantado em janeiro de 2023 na área impactada do lago Batata. Após a diminuição do nível d’água do lago Batata, expondo o substrato de fundo (que nesta região é o rejeito), o arroz seco e a matéria orgânica depositada ali serviram de substrato para o desenvolvimento de novos indivíduos germinados, recomeçando o ciclo de vida do arroz. Fonte: Reinaldo Bozelli
A vontade e anseio por recuperar ecossistemas aquáticos continentais se expandiu para a região costeira do estado do Rio de Janeiro, na Bacia Hidrográfica da Lagoa Imboassica. Apesar de ter iniciado minhas atividades acadêmicas quase que simultaneamente no lago Batata e na lagoa Imboassica, a atuação neste último ecossistema basicamente era atuar no monitoramento limnológico. Mas nos últimos anos ampliei a linha de pesquisa em recuperação de ecossistemas aquáticos com a inclusão de estudos voltados para redução de eutrofização da lagoa Imboassica utilizando ilhas flutuantes de plantas aquáticas. As ilhas flutuantes são montadas com estruturas de fácil aquisição e tem o objetivo de estabelecer a fito extração de elementos químicos, como nitrogênio e fósforo da água, reduzindo sua carga disponível no ecossistema. As ilhas flutuantes de Typha domingensis vem sendo estudadas para que possam ser colocadas em canais poluídos que deságuam na lagoa Imboassica e que promovam uma redução das concentrações de N e P na água devido a incorporação de uma porção destes elementos na biomassa vegetal e na microbiota associada ao sistema radicular (Foto 13).
Figura 2: Esquema de uma ilha flutuante artificial colonizada com T. domingensis (Taboa).
Foto 13: O biólogo Guilherme Sardenberg Barreto, estudante de doutorado do Nupem/UFRJ, cuida de uma das ilhas flutuantes no âmbito de sua pesquisa.
Além disso, estamos testando se o corte das folhas, seguido de rebrotamento, resulta em um aumento das taxas de assimilação dos nutrientes, o que garantiria maior eficiência da fito extração (Figura 3 e Foto 14). Os primeiros estudos indicaram que: (a) é viável estabelecer ilhas flutuantes na lagoa Imboassica e canais e (b) o corte sucessivo das folhas não causa a supressão dos indivíduos e estimula o rebrotamento de novos indivíduos (Foto 14) Acreditamos que o corte das folhas pode ser realizado após 100 dias de crescimento.
Figura 3: Primeiro croqui do experimento das ilhas flutuantes com corte das folhas. Fonte: Marcos Paulo Figueiredo de Barros.
Foto 14: Taboas cortadas, próximo ao sistema radicular na estrutura da ilha flutuante. Em seguida, a mesma ilha após 40 dias do corte das folhas. Fonte: Guilherme Sardenberg
A fitorremediação em ecossistemas aquáticos tem sido a principal linha de pesquisa. Os estudos com a taboa, para diminuir o conteúdo de fósforo e nitrogênio na água (caso da lagoa Imboassica), é a linha de pesquisa mais importantes atualmente. A pesquisa é desenvolvida com pesquisadores parceiros, professores e estudantes do Laboratório de Limnologia, tanto do laboratório localizado no Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade (Nupem/UFRJ-Macaé) como do laboratório localizado no Instituto de Biologia (UFRJ-Rio). Apesar de compormos o mesmo grupo de pesquisa, há dois laboratórios, um em cada cidade citada acima. Curiosamente, meus esforços científicos retornaram às plantas aquáticas, mas agora em um sentido de utilizá-las como mecanismos de recuperação de ecossistemas aquáticos continentais.
A oportunidade de divulgação de algumas de nossas atividades de pesquisa através do blog Limnonews pode representar a expansão do trabalho até mesmo em outros centros de ensino e pesquisa. O conteúdo abordado também pode servir de base para complementação de aulas e incentivar a criação de técnicas e formas de recuperar ecossistemas utilizando elementos da natureza, desde os jovens estudantes do ensino médio até pesquisadores e professores já estabelecidos em suas instituições. Esta forma de divulgação também pode atingir tomadores de decisão e gestores em diferentes hierarquias de governança. Mostrar a viabilidade de uma tecnologia baseada em elementos naturais ou promover a recuperação de ecossistemas com soluções baseadas na natureza é fundamental para promover movimentos mais sustentáveis.
Possuo então uma vontade particular de criar uma iniciativa como o “limnonews ESCOLAR”. Tenho o objetivo de gerar uma fonte de conteúdo textual que possa contribuir no desenvolvimento e formação de estudantes jovens, de preferência, ser uma ferramenta útil em um ambiente escolar. Temas vinculados aos estudos citados acima, por exemplo, podem ser complementares ao conteúdo curricular regular. Junto do professor, produzir bons textos que possam cumprir o objetivo de divulgar dados científicos bem como construir conhecimento em sala de aula.