Com os efeitos da crise climática e marcas cada vez mais visíveis da inequidade e de injustiças socioambientais, esforços de conscientização e chamadas por ação têm se tornado demandas de praxe para que a luz no fim do túnel não seja somente a esperança no caminho, mas um trajeto com um objetivo real e que possa ser alcançado em um futuro imediato. Nesse contexto, somos levados a pensar em nossa relação com o ambiente, compreendido não só como a natureza idealizada – que se veste de verde e tem forma de mata – mas sim como tudo aquilo com o qual interagimos a partir de nossa condição como indivíduos. Uma das áreas de interesse do campo da Educação Ambiental se encontra justamente no estudo das diferentes facetas sob as quais as interações humano-ambiente podem ocorrer, assim como o que emerge dessas interações e quais contextos prévios foram responsáveis por norteá-las. Dada a prevalência de elementos da Modernidade em todas as esferas de nossas vidas, podemos dizer que existe um viés sistêmico agindo como uma lente pré-concebida capaz de impor visões sobre o ambiente que nós não necessariamente estamos cientes que possuímos, pelo menos não até o momento em que paramos para refletir e confrontar tais pensamentos enraizados.
Por ser um conceito definido por sua natureza holística que trata da interconectividade de seus componentes, é esperado que existam vários fatores que influenciam nossa percepção do ambiente, da mesma forma que somos influenciados por ele de diversas formas. Partindo do axioma filosófico, dois indivíduos nunca irão perceber o meio da mesma forma, por mais que sejam oriundos de contextos sociais e econômicos idênticos e tenham passado por vivências similares ao longo de suas vidas, dado que em última instância a individualidade, em toda a sua existência subjetiva, é aquilo que irá designar valores e significados na “tela em branco” da realidade objetiva. Porém, quando olhamos para um contexto macro, é possível identificar tendências no que se diz respeito a percepção, entendimento e relação para com o ambiente ao realizar recortes amplos, como por exemplo no âmbito geracional, geográfico e cultural.
Para ilustrar isso, podemos pensar no seguinte cenário: a visão sobre o ambiente de uma pessoa que mora na capital do Rio de Janeiro irá diferir de alguém que mora na serra, assim como a visão dessa será diferente de um habitante da região dos lagos, e quando comparamos todas essas visões com a de um membro de uma comunidade tradicional dos Andes, seremos capazes de observar diferenças que obviamente dizem respeito ao teor subjetivo do individual, mas que também emergiram em um contexto cultural e regional específico, com seu conjunto de características e tendências únicas. A língua também exerce papel importante na percepção do meio e em nossa relação com ele, dado sua função como um dos inúmeros instrumentos pelos quais vivenciamos o mundo e como uma expressão da cultura de um povo. No caso de populações originárias, a existência de determinados vocábulos e expressões podem refletir vivências específicas com o ambiente e a natureza, a depender do tipo de relação presente. Um exemplo curioso é na língua irlandesa, pertencente ao tronco linguístico celta e construída ao longo de milênios por nativos das ilhas britânicas e que enfrenta apagamento e ameaças de extinção decorrentes da colonização inglesa. Nela, a palavra uiscefhuaraithe denomina a temperatura fria imposta a um objeto ou a um corpo causada necessariamente pelo contato com água gelada. A existência desse termo nos leva a pensar sobre qual tipo de relação as populações que o cunharam possuíam com a água – uma entidade transformadora, tão singular a ponto de ter uma de suas propriedades especificamente ressaltada. Outro exemplo é a língua inuktitut, uma das línguas faladas pelo povo originário inuit, do Círculo Ártico, que surpreendentemente não possui uma palavra para “natureza”, fato que inicialmente pode parecer paradoxal dado o grau de dependência dessas comunidades com a terra e a relação que compartilham, indo desde o material até o intangível, onde elementos da natureza assumem significações cosmológicas ao serem unidos ao culto aos ancestrais, sendo este um dos cernes dos sistemas espirituais xamânicos. Talvez a ausência de uma palavra para designar o mundo natural se deva à premissa de que, uma vez que nos consideramos parte do “todo”, não há porque categorizá-lo como algo que pode ser observado isoladamente ou tratado apenas por si só, o que resulta em uma dispensa da necessidade de nomeação.
O escopo de relações que se enquadram na dinâmica entre o ser humano e o ambiente (ou natureza, a depender do recorte feito) não poderia caber em um texto de blog, nem em uma dissertação ou tese, e ouso dizer até mesmo nem em um livro, dada a infinidade de variáveis em jogo e o caráter mutável da subjetividade. O que cabe a nós não é dar nome a cada um dos componentes desse intervalo cujo n tende ao infinito, mas sim compreender quais fatores regem essas relações e como isso ocorre. Em meu projeto de pesquisa da graduação, analisei os corpos textuais das placas de sinalização interpretativa das trilhas Lagoa da Mata e Águas Claras da Floresta Nacional de Carajás (FLONA), no Pará, buscando identificar e quantificar as ocorrências de fragmentos referentes somente a seres não-humanos, seres humanos e de fragmentos que tratassem da relação entre estes dois. As figuras abaixo ilustram um pouco desse processo, que consistiu na aplicação do método de Análise de Conteúdo da Bardin.
Figura 1: quadro de análise de uma placa da trilha Lagoa da Mata
O quadro mostra uma esquematização da análise conduzida com as 11 placas de sinalização, identificando as categorias presentes entre as três originalmente estipuladas (i: seres humanos; ii: seres não-humanos e iii: seres humanos e não-humanos), as unidades de registro destacadas e os núcleos de significados extraídos a partir destas. Com isso, tive como objetivo identificar tendências quanto à prevalência de determinados núcleos nesse universo de placas.
De longe, a categoria que assumiu a liderança no número de ocorrências foi a de seres humanos e não-humanos, que trata da interação entre estes. Nesse sentido, identifiquei fragmentos textuais referentes a relações de dominação e exploração (impactos antrópicos, extração de recursos minerais, uso da terra atrelado ao desenvolvimento e mudanças climáticas) e relações que conversam com o ecocentrismo, assumindo um caráter de respeito à existência e ao seu valor inerente (relativas a afetividade, horizontalidade, conhecimentos ecológicos tradicionais, reconhecimento da natureza como sujeito de direitos…). Pelo fato dos conteúdos da trilha estarem inseridos no contexto de Carajás, podemos começar a entender a função de cada um dos atores envolvidos em todas essas questões, sejam elas próximas ao polo “harmônico” ou “desarmônico” do contínuo identificado nessa categoria. O ambiente influencia e é influenciado, e com a FLONA de Carajás não é diferente. Sendo ela palco de inúmeros conflitos, histórias, vivências, ancestralidades e esferas de relações cuja totalidade se mostra numa ordem de grandeza que mal podemos compreender, esse território permanece como um monolito natural, histórico, científico e, acima de tudo, de (re)existência, em todas as suas formas.