Quando pensamos na figura do limnólogo, construímos imediatamente a imagem mental de um pesquisador imerso até a cintura (ou, em alguns casos extremos, até os ombros) em algum lago rico em macrófitas, carregando em mãos toda a sua parafernália de campo. É assim que essa ciência tem sido feita, desde Thienemann e Naumann. Para compreender as águas continentais e seus compartimentos bióticos e abióticos, o trabalho de campo é uma etapa não só indispensável: é a partir dela e da realização de coletas que obtemos amostras de água, zooplâncton, fitoplâncton e dados físico-químicos que irão fundamentar o desenvolvimento de nossas pesquisas. Porém, nas últimas décadas, é possível observar uma tendência entre os limnólogos. Cada vez mais, estudos que buscam contemplar fatores do entorno (a nível de paisagem) estão sendo realizados com o objetivo de entender quais processos ocorrem na interface terra-água, e como o ambiente terrestre pode afetar e é afetado pelo aquático. Há quem diga que podemos chamar essa tendência de algum tipo de migração. E dessa forma, assim como o infame Tiktaalik do Devoniano tardio, os limnólogos estão saindo da água.

Apesar de poder ser entendido como um aumento de escopo do campo da Limnologia, o movimento para fora da água não se dá somente no sentido de estudar ecossistemas terrestres, sua vegetação e solos e identificar como estes influenciam o ambiente aquático. Há como sair da água para estudar a própria água, só que de outras maneiras; maneiras essas que utilizam o que há de melhor da tecnologia atual e das ferramentas de sensoriamento remoto, na forma de satélites que orbitam nosso planeta e de sensores capazes de capturar e medir informações ópticas de diversos corpos hídricos. O conjunto de técnicas usadas para estudar a Terra através de imagens e dados referenciados geograficamente, chamado de geoprocessamento, é uma ciência consolidada e que possui um forte histórico de aplicações na geografia, oceanografia e climatologia, dada a relevância dessas ferramentas para obtenção e tratamento de variáveis físicas. Pense nos reports climáticos do Jornal Nacional, ou nas imagens de satélite em alta definição divulgadas pelos perfis oficiais da NASA em diversas mídias sociais. Desde que tal tecnologia foi concebida, ela se tornou parte integral de nosso dia a dia, e também da ciência.

Mas como ocorre o processo de obtenção desses dados, através de satélites? Isso irá depender de qual satélite estamos falando. O Landsat 8, que registrou o bloom do lago Erie, é o oitavo satélite lançado pelo programa Landsat, que é uma parceria entre a NASA e a USGS (United States Geological Survey). Uma curiosidade sobre ele é que se trata do programa mais longevo de monitoramento da Terra por imagens de satélite, sendo iniciado em julho de 1972 com o lançamento do Landsat 1. Existem também outros programas, como o europeu Copernicus, que conta com os satélites Sentinel, ordenados por numerações com base no tipo de dado que fornecem, que vão desde imagens diurnas e noturnas de radar, imagens ópticas de ambientes terrestres, dados atmosféricos e de altimetria de nível do mar. O lançamento mais recente, chamado de Sentinel 1-C, fornece imagens de radar, e está em órbita desde dezembro de 2024. Todos os dados captados pelos sensores dos satélites são disponibilizados em plataformas online, de acesso grátis.
Esses acervos digitais funcionam como grandes bancos de dados para pesquisadores que buscam utilizar dados espaciais em seu fazer científico. É importante estar ciente de qual programa, isso é, de qual base de dados essas informações serão extraídas, uma vez que satélites diferentes possuem imagens que correspondem a diferentes períodos de tempo (a depender de seu ano de lançamento e duração do programa) e diferentes periodicidades (referente ao tempo necessário para visitar novamente um mesmo ponto no espaço; ex.: de 5 em 5 dias). Além disso, diferentes satélites irão possuir bandas diferentes, o que, em última instância, irá ditar qual tipo de informação espectral seus sensores irão captar. Cada banda é responsável por “tirar uma fotografia” (um valor numérico definido como reflectância, que é a razão entre radiação incidente e refletida) de regiões específicas do espectro eletromagnético, indo da luz visível (bandas vermelha, azul e verde; o famoso RGB) até o infravermelho (bandas Shortwave-Infrared e Near-Infrared, no caso do Landsat 7). Essa informação de reflectância bruta por si só é capaz de discriminar, por exemplo, diferentes categorias de uso de solo. Por exemplo, se a banda G (verde) possuir um alto valor de reflectância, provavelmente estamos olhando para uma formação florestal densa ou um campo de gramíneas. De forma análoga, valores de reflectância altos referentes à banda B (azul) são esperados para o oceano e corpos d’água como um todo, salvo em casos de contaminação ou blooms algais. Estes fenômenos também podem ser identificados por “anomalias” de reflectância, o que torna essa ferramenta extremamente útil no campo da ecologia aquática para o diagnóstico pontual de impactos ambientais.

As aplicações desses dados espectrais são inúmeras, tanto para o ambiente terrestre quanto para o aquático. Na ecologia, quando trabalhamos com geoprocessamento, uma análise bastante comum que é feita para entender o papel da paisagem é a de análise de uso e cobertura do solo, que se refere ao “tipo” ou “categoria” que cada pixel de uma imagem de satélite irá possuir (por exemplo: área urbana, formação florestal, vegetação herbácea, pasto, cultivo agrícola…). A plataforma MapBiomas possui coleções de mapas de uso do solo na forma de uma série temporal com início no ano de 1985, permitindo ao usuário acompanhar as diferentes transformações sofridas pelas paisagens brasileiras ao longo dos anos, seja pelo avanço da urbanização ou pela perda de vegetação nativa para conversão desta em áreas de pasto. Além das coleções de uso do solo, eles também contam com mapas de estoque de carbono no solo, mineração, desmatamento, entre outros; o que consolida a plataforma como um excelente repositório de dados geoespaciais para responder perguntas ecológicas!

Dada a gama de ferramentas e possibilidades para a limnologia no universo do geoprocessamento, é de suma importância entendermos o que queremos fazer com esses dados e como vamos tratá-los. Eles serão utilizados para responder perguntas a nível de ecossistema, como por exemplo, entender como a paisagem do entorno pode afetar a produtividade e a disponibilidade de carbono em uma lagoa? Ou será uma abordagem focando em comunidades como o zooplâncton, buscando identificar padrões em suas populações que coincidem com mudanças de alguma característica da paisagem? O geoprocessamento é uma ferramenta, e como toda ferramenta, ele precisa de uma base científica forte. Não adianta termos acesso a inúmeros dados e imagens de satélite se não sabemos que pergunta fazer.
Em última instância, podemos dizer que sim, os limnólogos estão de fato saindo da água. Porém engana-se quem pensa que eles a estão abandonando. Essa mudança de perspectiva que se dá ao olhar para a Terra de cima é uma adição mais do que bem-vinda ao nosso arsenal científico, mas ela ainda depende da coleta de dados in situ, seja para a calibração de modelos que utilizam dados de reflectância ou para amostrar comunidades de interesse, como o zooplâncton ou fitoplâncton. E dessa forma, os limnólogos continuam com a água até a cintura, sem abrir mão de seu habitat natural.







