O que a Coca-Cola fez com minha avó?
Todo dia me levanto e geralmente faço as mesmas coisas, pois já é assim há mais de meio século. E faço assim porque sei que antes de mim o sol já se levantou, é dado. Lavo o rosto ou tomo um banho. Basta abrir a torneira. A água esta lá. Não é dada, é verdade, mas mesmo em tempos um pouco mais difíceis, ela está lá. Tem sido assim, pra mim, pra você, pra muitos. Segunda ou sexta, o dia vai avante, e vou também, mesmo com o trânsito que não anda, mas deveria. Como assim? Alguém tem que resolver isto. Se o rádio anuncia que tem corrupção, que a merenda escolar desapareceu, que tem bala perdida zunindo por aí ou que a taxa de desmatamento na Amazônia aumentou, olho para o lado, olho ao longe, vejo a lagoa poluída, o canal enegrecido, o lixo amontoado e vou adiante. Tem sido assim, tem estado assim há tempos. É dado, é natural. E afinal, o dia é cheio. Vou e volto, são tantas coisas por fazer. Há bastante com que se preocupar… um manuscrito para acabar, uma aula, um relatório, um projeto, uma reunião. Não há tempo pra pensar nisto tudo que está aí, coisas que estão aí, irritantemente por aí, coisas que estão dadas, verdadeiramente dadas, hipoteticamente dadas, indiferentemente recebidas. Por aí, cúmplices de minha omissão, parceiras do meu egoísmo. Mas nenhuma tão importante quanto minhas tarefas e objetivos diários, dignas do meu tempo, pois que são dadas. Passo meu dia incólume a tudo e a todos e sigo por rotas traçadas, permeando um mundo que aparenta obra perfeita e acabada qual Guernica, qual Pietá, qual Lusíadas ou ainda qual Águas de Março. De março, de janeiro ou qualquer que seja o mês, qualquer que seja o dia, igualmente dada, desapercebida. Fonte e manutenção da vida, de toda e qualquer vida, ainda assim esbanjada e conspurcada, profanada e poluída. E seguimos como se fora dada, grátis, muita e para sempre. E não a protegemos, dela pouco falamos. Somente quando ela falta ou vem demais e nos inunda que lembramos, para reclamar, da água. Isto me fez lembrar do povo Ayoreo, na Bolívia, que tendo a Abuela Grillo a cuidar da água por eles, talvez pudessem seguir tendo a água como dada, eterna e farta. Mas, senão para eles, mas para o povo Boliviano de Cochabamba, chegou o dia em que a ganância tomou a água da Abuela e a entregou à sanha da empresa californiana Bechtel, ali travestida de Aguas del Tunari. Como narra Jim Shultz “Apenas poucas semanas depois de assumir o controle da água, a empresa da Bechtel golpeou as famílias locais com um aumento de 200% na taxa de água ou mais. Trabalhadores que viviam com o salário mínimo local de $60 dólares deveriam pagar algo como $15 dólares para continuar tendo água correndo de suas torneiras”. E o único caminho possível foi a luta, e Cochabamba viveu a guerra da água.
Os cochabambinos foram à luta e venceram. E para Shultz é porque a “a água é algo essencial para a vida, diferente de um avião ou mesmo eletricidade em um país pobre. As pessoas sabiam que se perdessem o controle sobre sua água, perderiam o controle sobre suas vidas”. E foi por este caminho que a conversa andou dias atrás quando fomos falar de água com jovens da Maré, em uma atividade do Projeto Muda Maré. Tão rapidamente quanto chegamos ao cerne da questão que o caminho não é apenas fechar a torneira, mas entender os interesses que movem os poderosos, também entendemos como ainda há muito o que falar sobre a água. E entre estas coisas por falar, está que também temos nossa guerra por travar na busca por maior participação na tomada de decisões, p. ex., nos comitês de bacia. Isto é grande, desafiador. Mas também que existem coisas menores por ser ditas, como a que é possível beber água da torneira servida pelo município, geralmente mais segura que muita água mineral. Claro que ao parar de beber água mineral você irá contrariar a Nestlè e a Coca-Cola, portanto, preocupe-se com sua avó. Já com a minha, que agora está no céu, a Coca-Cola não pode fazer nada, pois ela não bebia refrigerantes, cantava muito pouco, e acho que nunca bebeu água mineral.
Para saber mais e definitivamente parar de beber água engarrafada, veja A História da Água Engarrafada (www.youtube.com/watch?v=AM9G7RtXlFQ),
para se emocionar e acreditar na força coletiva, veja Abuela Grillo (www.youtube.com/watch?v=ve4oYK9r5EQ)
e para conhecer o Muda Maré e nos dar aquela força, visite mudamare.blogspot.com.br
Como sempre …. Fantástico e envolvolvente!!!! E eu adoro a Abuela grillo!
Obrigado! Você também escreve assim! É seguir pensando e juntos construindo caminhos.
Muito bom Reinaldo! Concordo com a Laísa, fantástico e envolvente! Grande abraço!
Valeu Andre, gentileza sua. É um esforço de reflexão que recebe influências de todos os lados. Inclusive daí. Abraço.