Os impactos das mudanças climáticas e as respostas a estes impactos são cada vez mais conspícuos, sobretudo quando no que tange ambientes urbanos, os quais abrigam pelo menos 54% da população mundial (UN-HABITAT, 2016), além de uma diversidade de relações sociais, econômicas, políticas e ecológicas, que possuem, frequentemente, uma relação conflitiva em si. Para um impasse complexo e multifatorial, como as mudanças climáticas, são requeridos planejamentos e estratégias igualmente complexos, cuja interação e participação de diferentes segmentos societais e atores sociais faz-se necessário (BETSILL; BULKELEY, 2006). Nesse sentido, dialogar sobre as fundamentações, estruturação e papel do Estado e da Governança, principalmente uma governança ambiental, torna-se relevante para a formulação, implementação e efetividade de políticas, inclusive políticas ambientais e climáticas (DUIT et al., 2015).
O termo “Governança” apresenta sentidos próprios e polissêmicos, sendo associado não somente às vertentes das ciências políticas e sociais, mas também nos setores administrativos e corporativos. Embora apresente uma grafia semelhante à palavra “governo”, ambas as expressões tem acepções distintas. De acordo com Gonçalves (2011), tanto governança quanto governo estão envolvidos com os processos de poder e de autoridade ao longo de uma hierarquia de níveis de ação, no entanto não devem ser tratadas como sinônimos. A utilização do vocábulo “Governança” é, ainda, tão antiga quanto a de governo. Peters (2000) endossa que no século XIV, na França, era utilizada para fazer menção aos funcionários da corte. Com o passar dos séculos sua significação e utilização adquiriu refinamento, estreitando-se às ciências políticas, no que diz respeito à gestão de poder. Não obstante, foi a partir da segunda metade do século XX, sobretudo nos anos 1980, que o estudo e pesquisa acadêmica acerca desta temática foram desenvolvidos e aprimorados (PETERS, 2000). Segundo Brunnengraeber et al. (2006) se no início do novo milênio fosse realizada uma pesquisa com termos científicos mais usados, certamente “Governança” assumiria uma das primeiras posições, dado o seu destaque nos discursos acadêmicos e populares, além de assumir um interessante grau de interdisciplinaridade.
A mobilidade disciplinar e de aplicação da governança implica na multiplicidade de definições que são dadas a esta palavra. O trabalho de Weiss (2000) apresenta pelo menos oito destas definições, que refletem também uma mudança histórica e de concepções, sugerindo novas abordagens sobre descentralização política, direitos humanos, capital social e bens públicos. De forma genérica, embora as definições apresentadas tenham suas particularidades, fica evidente que alguns elementos-chave repetem-se. Logo, a governança traria arraigada a si, a gestão de poder e o controle sob a distribuição e uso de recursos – sejam eles econômicos, sociais ou naturais –; a institucionalização dos meios pelos quais um governo é dividido e exercido dentro da sociedade, com vistas ao fortalecimento da democracia, da participação social e da transparência nas decisões; os arranjos formais e informais entre Estado e diversos segmentos da sociedade, que culminam na administração pública; e, por fim, nos trâmites que envolvem a formulação e aplicação de políticas públicas, direitos e deveres civis (PETERS, 2000; WEISS, 2000).
A partir da segunda metade da década de 1960, através das manifestações de preocupação com as questões ambientais e ecológicas, representadas através da Conferência da Biosfera (1968), Conferência de Ramsar (1971), da criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e da Convenção sobre o Meio Ambiente Humano, ambas em 1972, inicia-se o questionamento sobre Governança Ambiental. Consoante Fonseca e Bursztyn “Quando o conceito de governança é estendido à esfera do desenvolvimento sustentável e das políticas ambientais, emprega-se a expressão governança ambiental. Trata-se, na verdade, apenas de uma delimitação temática do conceito”. (FONSECA; BURSZTYN, 2009, pág. 20).
No cenário brasileiro, os preceitos de governança ambiental foram modificados conforme alguns eventos históricos. Um dos marcos principais ocorreu após da Lei n° 6.938/1981 (BRASIL, 1981), também conhecida como Política Nacional do Meio Ambiente. A partir desta lei, instituíram-se as diretrizes e os instrumentos acerca da ocupação, uso e manejo de recursos naturais. Assegurou-se ainda, a implementação de instituições nos níveis federal, estadual e municipal, responsáveis por fazer a gestão e fiscalização dos recursos e atividades potencialmente poluidoras. Outras características desta legislação, como a tentativa de aumentar a participação e envolvimento de diferentes segmentos da sociedade nos processos decisórios e o caráter de comando e controle dos instrumentos políticos geram ainda discussões, seja pela dificuldade ou negligência na aplicabilidade, seja pela pouca eficiência ou excesso de burocracia de seus mecanismos (WEISS, 2000; ZHOURI, 2008). A década de 1990 foi marcada por grandes modificações econômicas que repercutiram com intensidade nos cenários político e social, redesenhando o papel e atuação do Estado (RIBEIRO, 2003). Os decênios seguintes são marcados por esta mesma tendência, fortalecimento da economia e de seus representantes em detrimento à questão ambiental, utilizando-se do engodo de que o desenvolvimento econômico deveria ser prioridade, e, para isto, seria preciso sobrepor alguns interesses à morosa legislação ambiental.
Embora o escopo de governança do Brasil seja conflitivo, sobretudo no tocante ao equacionamento entre recursos naturais, economia e interesses sociais (VAN DER HOFF et al., 2015), os gestores políticos, orientados pela comunidade científica observaram uma lacuna quanto à gestão de mudanças climáticas (NUNES et al., 2016). As primeiras iniciativas institucionais no país foram implementadas em 1994, através da Comissão Interministerial de Desenvolvimento Sustentável. Em 1999, a fim de legitimar acordos climáticos discutidos em âmbito global, formou-se a Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima. Nos anos 2000, a criação do Fórum Brasileiro de Mudanças Climática reforçou estes objetivos, otimizando o diálogo entre governo, metas estabelecidas e instrumentos políticos (VIOLA, 2002). Estimulou-se ainda, a participação civil e os diálogos setoriais, enfatizando uma característica já fortemente sugerida dentro dos mecanismos de governança ambiental internacionais (JACOBI; SULAIMAN, 2016). O aprofundamento nesta temática suscitou no Plano Nacional sobre Mudança do Clima (2008) e da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), regida pela Lei n° 12.187/2009 (BRASIL, 2009).
Não obstante a Política Nacional sobre Mudança do Clima pareça ser otimista e visionária, ela é por demais ampla e deficiente. É possível tecer várias críticas quanto à maneira como esta política articula-se com outras de hierarquia menor, na integração de planos setoriais ou mesmo quanto às abordagens no retardo às mudanças climáticas. Embora alguns dos princípios que norteiem a PNMC sejam aqueles já sugeridos no âmbito internacional (BRASIL, 2009), há casos de divergência entre as propostas desta política e o plano de desenvolvimento nacional, intensificando os questionamentos acerca do real interesse na tentativa de conciliar estas áreas. Muitas das lacunas observadas estão ligadas não somente a problemas de planejamento e integração, bem como ao curto período de vigência da legislação – que ainda não completou dez anos – e à fase de desenvolvimento e readequação de muitos mecanismos (BICHARA; LIMA, 2012). É evidente que a instituição da PNMC, ainda que com todos os reveses, pode ser entendida como um considerável marco na governança ambiental brasileira, que se propôs a refletir e dialogar sobre as mudanças climáticas. Cabe, agora, à bancada competente, aprimorar metas, planos, fiscalização, bem como fomentar a articulação com governos estaduais e municipais.
Bibliografia Citada
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