Com muito prazer trazemos mais um mês temático para vocês! Em março teremos textos sobre mulher e ciência feitos por mulheres maravilhosas que aceitaram colaborar conosco. Além disso, como de mulher inteligente esse mundo está lotado, para tentar dar conta de uma fração desse talento todo, vamos trazer textos todas as TERÇAS e QUINTAS aqui no blog, então já se preparem. (Quem nos segue no Instagram @limno.ufrj já sabia dessa novidade então siga a gente lá para ficar sabendo dos posts e também se inscreva na nossa Newsletter para saber todas as novidades em primeira mão.) Hoje para abrir o mês trazemos um questionamento para que possamos pensar onde estavam as mulheres em alguns momentos históricos importantes e porque elas foram apagadas? Esperamos que gostem
Equipe LimnoNews
A Ecologia é uma ciência relativamente nova. O termo Ecologia foi proposto em 1866 pelo cientista alemão Ernest Haeckel ao designar uma ciência que estudaria os seres vivos e a sua relação com o ambiente em que estavam inseridos. Ao longo do tempo, no entanto, ela se tornou uma ciência muito mais complexa e estruturada, relacionando-se com o entendimento da natureza de modo geral e integrada com outras áreas das ciências da vida como a zoologia e a botânica e, também, as ciências sociais. Para o ecólogo Eugene P. Odum, a ecologia seria mais do que apenas uma disciplina dentro das ciências da natureza, a ecologia seria uma ciência única que busca integrar organismos, ambiente físico e os seres humanos. No entanto, não é porque o termo Ecologia surgiu apenas no século XIX que as bases dela não existissem muito antes. Sendo assim, ficamos com a questão: quando será que a Ecologia, como observação e experimentação da natureza, surgiu? E quem seriam os primeiros ecólogos?
Mulheres na Pré-História
Essa “Ecologia primitiva” teria surgido junto com a própria história. A sobrevivência dos núcleos humanos se daria devido aos conhecimentos dos mesmos sobre esse ambiente e a dependência da natureza fazia com que o conhecimento sobre ela fosse indispensável. Sendo assim, a Pré-História teria marcado esse momento em que o ser humano começaria a tentar entender a natureza, seus processos e a distribuição dos animais e plantas. No entanto, a Pré-História é conhecida como o período dos “homens das cavernas”, onde estariam as mulheres? Sem elas a população humana não teria sobrevivido. Estariam elas nas cavernas, cuidando da prole? Só que não…Os fósseis de mulheres, como por exemplo a Luzia e a Lucy, foram responsáveis por trazer um viés de gênero ao se pensar esse período histórico. Com isso, ficou bem claro que a noção de que o papel feminino nesse período seria o do cuidado e manutenção da prole era muito mais um retrato dos cientistas modernos que os escavaram e não do período em si. (Nesse texto podemos ver o questionamento a cerca dessa representação).
Estudos arqueológicos mais recentes colocam as mulheres como protagonistas no sustento das tribos, sendo as coletoras-caçadoras responsáveis pela maioria dos alimentos do grupo. Elas participavam do processamento do alimento, desde o deslocamento do animal até o corte da carne para alimentação. Seriam elas então as primeiras caçadoras? Um outro exemplo do papel feminino negligenciado é a própria arte. As famosas pinturas rupestres sempre foram pensadas como feitas por homens. Porém uma caverna na Espanha mudou esse paradigma. A caverna de El Castillo teria as pinturas mais antigas já encontradas, com cerca de 41.000 anos, e dentre elas, algumas são provavelmente feitas por mulheres. Seriam então elas, as primeiras artistas? Já um ponto muito atrelado a figura feminina é o surgimento da agricultura e a entrada do ser humano no período Neolítico. A prática da agricultura é vinculada as mulheres por estar relacionada ao sedentarismo do ser humano e a manutenção da “casa”, enquanto os homens iam caçar (algo que já ficou claro que não era muito bem assim). No entanto, o papel da mulher nesse espaço é de extrema importância até hoje, tendo elas, um papel central no desenvolvimento agrícola. Seriam elas então as primeiras agricultoras?
Mulheres e Caça às bruxas
Ao se pensar sobre as mulheres na história um período que sempre vem a mente é a Caça às bruxas, um movimento de perseguição religiosa, política e social que ocorreu dos séculos XV a XVIII por toda a Europa e nas colônias americanas. No entanto, há relatos contemporâneos de caça às bruxas em países da África e Oceania. A feitiçaria e a bruxaria datam de antes desse período, desde a Antiguidade a escritos sobre o assunto, seja a condenação de feitiçaria no código de Hammurabi, na bíblia hebraica ou nas Doze tábuas do direito romano. Independente se você acredita ou não em bruxas e feiticeiros há algo de interessante nesse processo, o viés de gênero. Na Idade Moderna o conceito de bruxa se tornou amplo: mulheres que vivessem sozinhas, benzedeiras, parteiras, as características do que seriam uma bruxa ficaram muito difíceis de serem distinguidas, mas algo ficava claro…a maioria eram mulheres, mulheres que tivessem aquém dos padrões sociais patriarcais. Até hoje ao se pensar em bruxos/magos/feiticeiros nós lembramos de Merlin, de alquimistas, e até do Harry Potter, mas as bruxas, são sempre as vilãs das histórias infantis, mulheres feias e perigosas que matam crianças
“A diferença entre alquimistas e bruxas é que os primeiros eram homens, ricos, educados e próximos ao poder, conselheiros de reis e papas, justificando sua atividade como uma manipulação da natureza. As bruxas eram conhecedoras de ritos e poções de tempos pagãos, sem entender como isso poderia ser visto como adoração a Satã.” — Raphael Tsavkko
Cadê a ecologia nessa história? Ao pensarmos sobre essas bruxas e seus feitiços podemos caracterizá-las, na realidade, como mulheres que tinham conhecimento da fisiologia humana, principalmente a feminina, de ervas, óleos essenciais e plantas medicinais. Eram mulheres que, a partir, de seu conhecimento e observação da natureza buscavam curar as pessoas, seriam elas bem mais próximas de pesquisadoras ou médicas do que mulheres perversas que queriam enfeitiçar e matar pessoas. Elas eram mulheres independentes que faziam desses conhecimentos e atendimentos uma forma de se sustentar. No livro “O Calibã e a bruxa”:
“A substituição da bruxa e da curandeira popular pelo doutor levanta a questão sobre o papel que o surgimento da ciência moderna e da visão científica do mundo tiveram na ascensão e queda da caça às bruxas. (…) Por um lado, há o Iluminismo, que reconhece o advento da racionalidade cientifica como fator determinante para o fim da perseguição (…) no entanto, os mesmos juízes que limitaram os julgamentos contra as bruxas, nunca questionaram a veracidade da bruxaria. (…) Na verdade não há provas de que a nova ciência teve um efeito libertador. A visão mecanicista da natureza “desencantou o mundo”, mas não há provas de que aqueles que a promoveram tenham falado em defesa das mulheres acusadas como bruxas. – Silvia Federici.
As mulheres estão atreladas a ideia da natureza selvagem e incontrolável e, por isso, sua perseguição seria devido a mudança de paradigma que a revolução científica e a filosofia mecanicista cartesiana trouxeram. A nova ciência tinha um projeto oposto a essa visão desordenada e foi através da perseguição e conquista dessas mulheres que ela se baseou. Portanto, a ideia de racionalidade como um progresso é questionável, a caça às bruxas pode ter sido um processo de destruição do meio ambiente através da exploração capitalista da natureza e das mulheres (Merchant, 1980). Portanto, a caça às bruxas foi um movimento social, econômico e político e não apenas religioso e trata-se muito da ascensão de uma burguesia capitalista patriarcal que atrelou a perseguição dessas mulheres a uma lógica de desenvolvimento e uma visão utilitarista de destruição da natureza.
Mulheres e povos originários
Essa relação entre as mulheres e a natureza também pode ser vista nas descrições da América ameríndia com a chegada dos invasores, ditos “colonizadores”. A caça às bruxas também ocorreu nas Américas, sendo as mulheres as mais perseguidas. No entanto, a ideologia racista foi adicionada na lógica de conquista e dominação europeia. A definição de negritude e feminilidade funcionavam como marcas de irracionalidade e selvageria que excluía essas pessoas dos europeus e, consequentemente naturalizavam sua exploração (Federici, 2019). No entanto, se retornarmos para os pré-colombianos é possível observar outro padrão social das mulheres, como por exemplo, a presença de importantes divindades femininas presentes nas culturas pré-colombianas que demonstrava um poder feminino presente nessas sociedades. Antes da invasão europeia na América as mulheres tinham um papel social reconhecido, participando de atividades na esfera social e participando de organizações na sociedade. “Além de serem agricultoras, donas de casa, tecelãs e produtoras dos panos coloridos utilizados tanto na vida cotidiana quanto durante as cerimonias, também eram oleiras, herboristas, curandeiras e sacerdotisas a serviço dos deuses locais” (Federici, 2019).
A misogenia, portanto, é uma importação da Europa e com ela a nova reestruturação da sociedade colonizada que colocou o poder econômico e político na figura masculina. As mulheres foram usadas como moeda de troca, vendidas para os europeus brancos, perderam suas terras, foram obrigadas a trabalhar nas minas e perderam seus direitos sociais. A perseguição das ditas bruxas acabava com as práticas religiosas tradicionais ao mesmo tempo que impedia revoltas anticoloniais idealizadas pelas mulheres. A sobrevivência de crenças antigas dessas comunidades só ocorreu devido a resistência de mulheres que cumpriram o papel decisivo na defesa da cultura, da comunidade e dos conhecimentos tradicionais de cura. No Brasil, o papel feminino nas tribos indígenas não foi diferente, as mulheres sempre representaram um contato com a natureza, com a terra, com a prole e são uma figura de resistência até os dias de hoje em que temos importantes nomes femininos indígenas na política. Essa relação das mulheres com a natureza como uma forma de conhecimento importante para a própria manutenção das sociedades é algo que perpassa pela nossa dúvida da origem dos ecólogos. Ao pensar nas pequenas tribos e sociedades construídas ao longo da história da humanidade temos o contado mulher-natureza como um elo forte e por que não formador de conhecimento?
A relação entre as mulheres e a natureza é milenar, como vimos brevemente nesse texto. O contato entre o feminino e a natureza e com os conhecimentos e práticas oriundos dessa relação são muito importantes. O ecofeminismo, por exemplo, surge exatamente desse encontro entre pesquisas sobre feminismo, justiça social e preservação do meio ambiente, buscando explicar a relação entre gênero, ecologia, raça, espécie etc. No entanto, isso é um assunto para outro texto, pois o tema do ecofeminismo é extremamente importante para se entender a relação entre opressão de gênero e exploração da natureza e merece um texto único sobre isso. No entanto, a ideia de trazer esse termo aqui é a de mostrar que essa intersecção mulher e natureza é atual e de que o ecofeminismo possa ser uma forma de explicar diferentes formas de exploração atuais e históricas, dialogando também com o feminismo marxista e, além disso, de expressar o protagonismo feminino nesse processo.
A ideia desse texto não é a responder à pergunta do título, perdão se fiz você acreditar nisso. A ideia desse texto é exatamente levantar questionamentos sobre o papel das mulheres no surgimento e na estruturação das comunidades e, com isso, nas ciências. Além disso, ressaltar o papel delas nos conhecimentos tradicionais, principalmente, oriundos de uma relação com a natureza. Relação essa baseada em experimentação, em observação e em testes. O papel das mulheres foi apagado da história por uma lógica machista de sociedade que restringe a mulher ao espaço privado, porém com esse texto eu espero que você possa ter visto que isso não é de uma natureza feminina, até porque não se nasce mulher, torna-se mulher e porque não tornar-se cientista?
Por Ana Luiza Lima
Referências
https://brasilescola.uol.com.br/historiag/o-cotidiano-mulher-na-pre-historia.htm#:~:text=J%C3%A1%20antes%20da%20descoberta%20da,eram%20mortos%20com%20fins%20alimentares.
https://theconversation.com/where-were-all-the-women-in-the-stone-age-73374
https://www.nationalgeographic.com/adventure/article/131008-women-handprints-oldest-neolithic-cave-art
O Importante Papel das Mulheres no Desenvolvimento Rural
https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/bruxas-reais-historia.phtml
ANGELIN, Rosângela. Mulheres, ecofeminismo e desenvolvimento sustentável diante das perspectivas de redistribuição e reconhecimento de gênero. Revista Eletrônica Direito e Política, v. 9, n. 3, p. 1569-1597, 2014.
FEDERICI, Silvia. “O Calibã e a Bruxa”. 1ª Edição. São Paulo. Editora Elefante, 2019.
GARCIA, Loreley. A relação mulher e natureza: laços e nós enredados na teia da vida. Gaia Scientia, v. 3, n. 1, p. 11-16, 2009.
MAIZZA, Fabiana; DE ALENCAR VIEIRA, Suzane. Introdução ao dossiê Ecologia e Feminismo: criações políticas de mulheres indígenas, quilombolas e camponesas. Campos-Revista de Antropologia, v. 19, n. 1, 2019.
MERCHANT, Carolyn. “The Death of Nature: Women, Ecology and the Scientific”. EUA. Editora HarperOne, 1990. TOSI, Lúcia. Mulher e ciência: a revolução científica, a caça às bruxas e a ciência moderna. Cadernos pagu, n. 10, p. 369-397, 1998.